terça-feira, 31 de dezembro de 2019

Três lembretes para o Ano Novo

“Adeus ano velho, feliz ano novo, que tudo se realize no ano que vai nascer. Muito dinheiro no bolso, saúde para dar e vender.” / “Hoje é um novo dia, de um novo tempo que começou. Nesses novos dias as alegrias serão de todos, é só querer. Todos os nossos sonhos serão verdade, o futuro já começou.”

Começamos hoje a contagem de mais 365 dias de um novo ano e os trechos das músicas acima revelam o que muitas pessoas em nossa pátria desejam para 2020, mas, infelizmente, sem uma consciência correta sobre Deus, a maioria dessas pessoas coloca nesses desejos a perspectiva de um ano bom.

Como cristãos, também fazemos planos, temos desejos e esperamos várias coisas boas neste ano que se inicia, contudo, não podemos deixar de observar o que ensina a Palavra de Deus. Tenha, então, em mente esses três “lembretes” contidos nos primeiros versículos de Provérbios 16:

1. Planeje, mas sem esquecer que o Senhor é quem dirige sua vida

“O coração do homem pode fazer planos, mas a resposta certa dos lábios vem do Senhor” (16.1).

Temos aqui uma grande verdade: Deus é quem de fato dirige o nosso viver.

Perceba que o texto fala sobre o coração do homem. A Bíblia ensina que somos controlados pelo nosso coração (Mt 6.21). É dele que procedem as fontes da vida (Pv 4.23). Todos os nossos planos e projetos, conforme o texto, partem, então, dos desejos do nosso coração.

O texto não desestimula o planejamento e ele deve mesmo acontecer. A grande questão aqui é que planejamos sabendo que do Senhor é a resposta certa dos lábios. Geralmente, quando a segunda parte desse texto é citada, é da seguinte forma: “a resposta certa vem dos lábios do Senhor”, mas o sentido do texto é outro. Com “a resposta certa dos lábios vem do Senhor” o escritor quer afirmar que é o Senhor é quem capacita o homem para realizar alguma coisa.

Isso quer dizer que só conseguiremos cumprir aquilo que está de acordo com os propósitos do Senhor em nossa vida. Alguns poderiam questionar esta afirmação e dizer: “Mas, se fosse assim, só nos ocorreriam coisas boas. O Senhor não nos capacitaria para fazer o que é errado.” Engana-se quem pensa desta maneira.

Deus nos capacita a realizar até aquilo que é contrário à sua vontade revelada a fim de que, com o coração exposto pelas circunstâncias, sejamos tratados por ele e nos tornemos semelhantes a seu Filho. O Senhor é Soberano e dirige nossa vida a cada momento.

É por isso mesmo que devemos estar atentos ao segundo lembrete:

2. Esteja atento às suas motivações

“Todos os caminhos do homem são puros aos seus olhos, mas o Senhor pesa o espírito” (16.2).

Nesse versículo somos advertidos de que, para o Senhor, a “motivação” é importante.

O texto é claro: para o homem, tudo o que ele planeja está correto. Todos os caminhos a que ele se propõe a seguir são puros. Porém, a segunda parte do verso começa com um eloquente “mas...”. É como se o escritor estivesse dizendo: “a despeito do que pense o homem acerca daquilo que ele propõe”, o Senhor pesa o espírito.

Temos aqui duas palavras importantes: “Pesar”, que significa considerar ou examinar, e “espírito”, que diz respeito à disposição do coração (motivação).

Isso quer dizer que o Senhor sempre considerará o que nos leva a agir de determinada forma, ou planejar qualquer coisa que seja e não simplesmente” o planejamento em si. Sabendo que o Senhor examina as intenções daquilo que fazemos, devemos estar também atentos ao que nos leva a planejar.

Já vimos que os desejos procedem do nosso coração e sabemos pela Bíblia que o nosso coração, muitas vezes, nos engana, mas por meio da Palavra de Deus temos condições de avaliar aquilo que intentamos fazer no ano que se inicia (Hb 4.12).

Pelo menos duas perguntas são importantes aqui e devemos considerá-las: 1) Por que quero fazer (motivo)? 2) Qual o meu alvo com isso (resultado)?

Se respondermos a essas perguntas tendo em mente o que Paulo ensinou aos Coríntios: “Quer comais, quer bebais, ou façais outra coisa qualquer, fazei tudo para a glória de Deus” (1Co 10.31), podemos aferir as nossas motivações e, a partir daí, nos esforçar para realizar tudo aquilo a que estamos nos propondo ou abandonar o plano caso isso não glorifique ao Senhor.

3. Confie no cuidado do Senhor

“Confia ao Senhor as tuas obras, e os teus desígnios serão estabelecidos” (16.3).

O verso 3 nos traz o último lembrete. Ao iniciar um novo ano, devemos reafirmar nossa convicção de que confiamos no cuidado do Senhor. Creio firmemente que a ideia de confiar ao Senhor as obras para ter os desígnios estabelecidos, ensinada aqui por Salomão, é a mesma ensinada por Jesus: “Vos designei para que vades e deis fruto, e o vosso fruto permaneça; a fim de que tudo quanto pedirdes ao Pai em meu nome, ele vo-lo conceda” (Jo 15.16), e que é repetida por João: “E esta é a confiança que temos para com ele: que, se pedirmos alguma coisa segundo a sua vontade, ele nos ouve” (1Jo 5.14).

Aqueles que conhecem o Senhor e procuram viver de acordo com a sua Palavra são moldados pelo próprio Senhor e aprendem a pedir em conformidade com sua vontade. Sendo assim, quando confiamos ao Senhor nossas obras e estas estão em conformidade com as Escrituras, ele as estabelece.

Ao planejar o ano de 2020, lembre-se de confiar no cuidado daquele que tem dirigido nossas vidas. A nossa confiança deve ser a tal ponto que, mesmo que as coisas pareçam ir mal, consigamos descansar no Senhor.

Que o Senhor abençoe sua vida neste novo ano e que ele mesmo estabeleça aquilo que você tem planejado, caso sua motivação seja a correta: a glória e a honra daquele que nos salvou.

Milton C. J. Junior

quinta-feira, 12 de dezembro de 2019

Faça certo pelos motivos certos

Resultado de imagem para crossTerminados os meus dias de férias logo no primeiro mês deste ano eu estava pensando em um tema para o primeiro texto a ser escrito e na lida diária com meus filhos, mais uma vez, o assunto das motivações do coração veio à tona. Calvino foi preciso quando afirmou que o coração do homem é uma perpétua fábrica de ídolos!

Acordamos e logo pela manhã havia algumas tarefas a serem feitas. Minha filha deveria arrumar a cama e meu filho ajudaria a mãe colocando os calçados que foram limpos na sapateira. Enquanto isso, conversando com minha esposa, mencionei que os deixaria assistir a um filme que eles estavam pedindo há dias. Minha esposa pediu que eu ligasse a TV somente depois que o mais novo terminasse a sua tarefa. A essa altura minha mais velha já estava no sofá, lendo um gibi.

Quando eu disse que eles iriam assistir o filme após o término da tarefa, mais que rapidamente minha menina disse: “Vou ajudar meu irmão!”, e levantou-se correndo para fazê-lo. Eis que surge, então, uma oportunidade de fazer o que ordenou o Senhor em Deuteronômio, inculcar aos filhos a Palavra, falando enquanto se está “assentado em tua casa, e andando pelo caminho, e ao deitar-te, e ao levantar-te” (Dt 6.7).

Comecei falando à minha filha que ajudar o irmão era uma coisa muito boa. É importante demonstrar que problema não é necessariamente o que é feito, mas a razão para fazer o que se faz. Pais precisam ter o devido cuidado a fim de não desanimarem os filhos, somente mostrando que tudo o que fazem está errado, mas após falar que a ação foi boa, era hora de instruir o coração.

Perguntei o porquê de ela ter ido ajudar o irmão tão entusiasmada e rapidamente. A resposta não poderia ser outra: “porque quero assistir logo o filme!”. Tornei a perguntar se esta seria a razão certa para ajudar o irmão e ela logo fez uma carinha triste, entendendo o problema. Eu disse, então, que era preciso fazer coisas certas pela razão certa.

Meu objetivo com isso é um só. Ensinar a minha filha que é preciso amar a Deus e ao próximo, quando nos dispomos a fazer algo por outros. A glória de Deus, primeiramente, e o bem do outro, precisam ser os motivadores para as atitudes. Naquele momento, apesar de fazer algo bom e certo, ela agia motivada apenas pelo seu desejo de assistir ao filme. Possivelmente, se não houvesse um filme na história, ela continuaria assentada no sofá, lendo o seu gibi.

É claro que tudo isso também precisa ser dito a respeito de nós, pais. Ao ver as crianças fazendo o que é certo, ainda que somente externamente, é tentador querer usar os desejos do coração dos filhos para controlá-los e adestrá-los (sim, a palavra é essa). Dizer aos filhos que receberão um presente caso se comportem bem, não poucas vezes, “funciona”. O problema é que este caminho, geralmente mais rápido que o de gastar tempo tratando das motivações corretas, no máximo, fará com que os filhos se tornem fariseus ensimesmados, que enxergam o mundo girando ao seu redor, cuja única chance de deixarem a si mesmos de lado para ajudar a outros será quando for para conseguir o que seus corações tanto almejam.

Sim, filhos e pais agem de acordo com o que está em seus corações. É por isso que amar a Cristo precisa ser sempre o alvo maior. Quanto mais o amamos, mais temos condições de negarmos a nós mesmos (Mt 16.24).

Diante disso, os pais que querem cumprir o que ordena o Senhor em Deuteronômio, inculcando a Palavra aos filhos em todo o tempo, precisam ter em mente o que afirma o início do versículo 6.6: “Estas palavras que, hoje, te ordeno estarão no teu coração”. O ensino da Palavra aos filhos pressupõe que ela esteja já guardada no coração dos pais, de outra forma, o ensino será tal qual o dos escribas e fariseus que falavam e não faziam.

Mais importante ainda é lembrar a maior razão que temos a fim de fazer tudo para a glória de Deus: Cristo Jesus, nosso Senhor. É por causa de tudo o que ele fez de forma perfeita, cumprindo plenamente todos os mandamentos, assumindo sobre si os pecados do seu povo, sofrendo a punição que viria sobre nós, que não estamos mais debaixo da maldição e podemos viver para a glória de Deus. Fomos salvos pela graça, mediante a fé em Cristo, a fim de viver para Deus e não para nós mesmos. Paulo afirmou que “somos feitura dele, criados em Cristo Jesus para boas obras, as quais Deus de antemão preparou para que andássemos nelas” (Ef 2.10). Essa deve ser nossa lembrança e assim devemos viver.

Cuide portanto, não somente daquilo que você faz, mas esteja bem atento às razões do seu coração. É importante, diante de tudo o que você vai fazer, considerar: Qual a razão para eu fazer isso? O que estou buscando? A quem estou querendo agradar? Perguntas como essas trazem à tona aquilo que está movendo a nossa vida.

Tenha como regra para si o que foi respondido por Jesus ao ser questionado sobre qual seria o grande mandamento da lei: “Amarás o Senhor, teu Deus, de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todo o teu pensamento. Este é o primeiro e grande mandamento. E o segundo, semelhante a este, é: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. Desses dois mandamentos dependem toda a lei e os profetas” (Mt 22.37-40. Assim. Fazendo o que fizer, você fará certo pelos motivos certos.

Para isso você foi salvo por Jesus!

Milton C. J. Junior

sábado, 30 de novembro de 2019

O falso deus chamado Jesus

De todos os falsos deuses, penso que o pior seja o que é chamado de Jesus. Não se preocupe, eu não apostatei da fé. Estou aqui a pensar na advertência de Jesus aos seus discípulos: “Então, se alguém vos disser: Eis aqui o Cristo! Ou: Ei-lo ali! Não acrediteis; porque surgirão falsos cristos e falsos profetas operando grandes sinais e prodígios, para enganar, se possível, os próprios eleitos” (Mt 24.23-24).

Eu sei que a advertência se refere à questão da volta de Jesus, mas creio que ela pode ser aplicada também ao falso ensino acerca do Senhor, principalmente se considerarmos que ele falou sobre a necessidade de crer nele como revelado em sua Santa Palavra, ao dizer: “Quem crer em mim, como diz a Escritura, do seu interior fluirão rios de água viva” (Jo 7.38).

Não é de hoje que falsos mestres levam o povo ao erro, ensinando heresias a respeito do Filho de Deus. No Novo Testamento é possível verificar que falsos mestres ensinaram que ele não tinha um corpo físico (1Jo 4.2-3), que ele não havia ressuscitado (1Co 15.12-15) e que ele não mais voltaria (2Pe 3.9). No decorrer da história da Igreja, várias outras heresias foram ensinadas: Ele não era Deus; ele não era homem; ele foi adotado por Deus; ele foi a primeira criatura de Deus; etc. A teologia liberal fala de um “Jesus da fé”, fruto da crença dos discípulos, enquanto afirma que o “Jesus histórico” permaneceu morto. Fora do âmbito eclesiástico, outras concepções a respeito de Jesus, igualmente erradas, retratam-no como um revolucionário, um espírito iluminado, um grande mestre, etc. No Brasil há, inclusive, um maluco que afirma ser o próprio Jesus Cristo.

Qualquer ensino que negue que Jesus Cristo é o próprio Deus encarnado leva os homens a crer não do Messias prometido, mas em um falso deus. Quando se imagina um Jesus diferente da forma como ele é retratado nas Escrituras, os homens estão diante de um ídolo.

A consequência é que não há vida abundante para os que não creem nele como diz a Escritura. Anos atrás, foi-me encaminhado um irmão, pretensamente crente no Senhor Jesus, membro de uma igreja evangélica, plenamente engajado em sua igreja, ocupando inclusive cargos, e que passava por crises terríveis de ansiedade e depressão.

Em uma de minhas conversas com ele, após verificar que o que lhe tirava a paz eram vários pecados cometidos, os quais ele disse já ter confessado a Deus, sem contudo se ver perdoado e encontrar a paz, perguntei quem era Jesus, em sua concepção.

O que se seguiu foi um dos momentos mais esquisitos em todos os meus anos de aconselhamento pastoral. Aquele “irmão” me olhou e disse: “Eu acho que existe um planeta cheio de Jesuses, comprometidos com a paz interplanetária, e um desses veio para a Terra”. Após o susto inicial e a tentação de achar que eu estava sendo alvo de alguma pegadinha, ou câmera escondida, lembrei de uma de minhas leituras feitas ainda na adolescência (santa providência!) e perguntei se ele conhecia um livro chamado Eram os deuses astronautas?. Com a resposta afirmativa, comecei a evangelizar aquele homem, mostrando que aquele pretenso Jesus de fato não o levaria a experimentar a paz.

Este homem era estudado, havia feito até doutorado, destacando-se em sua área de atuação, mas estava profundamente enganado a respeito de Jesus Cristo. Sua crença não vinha da Palavra de Deus, mas de um livro que defende a tese da existência de seres inteligentes em outros planetas, que no passado trouxeram grandes conhecimentos à Terra e, por mais que ele fizesse parte de uma igreja evangélica e chamasse o seu deus de Jesus, o objeto de sua fé era um ídolo.

Sim, são terríveis as consequências de crer em Jesus à parte da Escritura. A despeito disso, muitos têm ensinado a respeito de um Jesus que é manipulado pelas orações, campanhas e “pagamentos de preço” dos fiéis, crença que em nada difere, por exemplo, do santo Antônio que é amarrado de cabeça para baixo a fim de que arrume um casamento para o fiel, ou das entidades a quem se oferecem sacrifícios com o fim de alcançar o que se almeja. Como é de se esperar de todo falso deus, esse ídolo chamado Jesus leva os fiéis à decepção e tristeza, pois não cumpre o que é anunciado pelos vendedores de campanhas.

É preciso rejeitar os falsos ensinos a respeito do Senhor Jesus, afinal de contas, como afirmou o próprio Redentor: “A vida eterna é esta: que te conheçam a ti, o único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, a quem enviaste” (Jo 17.3). Quando os discípulos do caminho de Emaús estavam preocupados e entristecidos, após a morte de Jesus, ainda que tivessem ouvido que ele havia ressuscitado, foram repreendidos pelo Senhor que os chamou de néscios e tardos de coração. A razão de toda aquela tristeza era não crerem em tudo o que os profetas disseram a respeito de Jesus, por isso, “começando por Moisés, discorrendo por todos os Profetas, expunha-lhes o que a seu respeito constava em todas as Escrituras” (Lc 24.13-27).

Quando você ouvir sobre Jesus, faça como os bereanos! Ouça com atenção e confira nas Escrituras a fim de verificar se as coisas são de fato assim (At 17.11). Como ensina o Catecismo Maior de Westminster, “as Escrituras ensinam, principalmente, o que o homem deve crer acerca de Deus, e o dever que Deus requer do homem” (Pergunta 5).

Jesus é o Deus encarnado e Somente nas Escrituras você aprenderá corretamente a respeito dele a fim de encontrar salvação e vida abundante. Muito cuidado, então, para não estar crendo em um falso deus, pois um falso deus não salva, ainda que você o chame de Jesus.

Milton C. J. Junior

terça-feira, 19 de novembro de 2019

Crer, adorar e fazer– ou: cuidado com os teólogos de internet

Qual é a razão do estudo teológico? Esta pergunta é indubitavelmente importante, sobretudo em dias em que o interesse pela teologia reformada tem aumentado exponencialmente. Como pastor de uma denominação herdeira da teologia reformada, muito me alegro com esse crescimento, ainda que a alegria venha com pelo menos duas preocupações.

As preocupações se dão por fatos que podem ser notados facilmente, navegando um pouco nas redes sociais. Crescem a cada dia as páginas de cunho pretensamente reformado. Todos os dias centenas de citações de teólogos são compartilhadas e recompartilhadas, algumas até mesmo de autoria duvidosa. Basta navegar um pouco para comprovar.

Cito, então, minha primeira preocupação: muitos daqueles que se dedicam a cuidar de suas páginas e comunidades, além daqueles que estão interagindo com todo esse conteúdo, não se dedicam da mesma forma à igreja local. Alguns sequer fazem parte de uma igreja e estão submissos ao pastoreio daqueles que o Senhor chamou para cuidar de sua igreja. Eis um terrível contrassenso: a tentativa de reformar a Igreja, estando fora de sua jurisdição.

Numa parábola moderna eu diria que os teólogos de internet se assemelham a uma criança que encontrou no Google qual é a medida de massa para reboco e já quis discutir sobre edificações com engenheiros e mestres de obra.

Minha segunda preocupação é o fato de que, em muitos casos, o amor pelo debate e discussões é um fim em si mesmo. Com o álibi de defender a sã doutrina, ofensas são proferidas a irmãos e o Evangelho, não poucas vezes, é envergonhado. Vi certa vez um jovem que expôs um pastor em praça (post) pública, propondo a queima do “herege” na fogueira virtual de maledicências do Facebook (fogueira alimentada pelo combustível das “curtidas”) porque tal pastor tinha uma posição diferente da que tinha o tal jovem em certo assunto, posição que, diga-se de passagem, não tem consenso nem mesmo entre teólogos sérios e respeitados no meio reformado.

Jovens como este muitas vezes agem como “justiceiros virtuais reformados”. Um justiceiro é aquele que decide punir criminosos à margem da lei, tomado pelo desejo de “fazer justiça” com as próprias mãos. Estes jovens, se estivessem seriamente comprometidos com a Igreja, denunciariam tais pastores aos concílios responsáveis e, caso fosse provado que são falsos mestres, eles poderiam ser corretamente disciplinados. Mas parece que o Facebook é o novo concílio e tais pessoas, do alto de sua sabedoria teológica adquirida na leitura de meia dúzia de livros ou artigos, as autoridades supremas para decidir pela queima de “hereges”.

O amor pela doutrina não pode ser um fim em si mesmo. Eu sei da beleza intelectual que há na teologia reformada, mas tem acontecido com muitos o que expressa Oswaldo Montenegro em uma de suas músicas, em que diz: “Eu amava como amava um pescador que se encanta mais com a rede que com o mar”. Aqueles que amam a doutrina pela doutrina deixam de contemplar a beleza do Deus que se revela por meio de seu Filho Jesus Cristo, da mesma forma que o pescador encantado pela rede deixa de lado a beleza do mar.

O caminho bíblico é diferente do que tem acontecido e que é alvo de minha preocupação. Josué é ordenado por Deus a não deixar de falar do Livro da Lei. A responsabilidade em falar seria grande, mas “antes [disse também o Senhor], medita nele dia e noite, para que tenhas o cuidado de fazer tudo quanto nele está escrito” (Js 1.8). Josué precisava meditar, fazer e falar.

No livro de Esdras, vemos algo parecido. O texto diz que a boa mão de Deus era sobre ele, “porque Esdras tinha disposto o coração para buscar a Lei do Senhor, e para a cumpir, e para ensinar em Israel os seus estatutos e os seus juízos” (Ed 7.10). Percebeu? Buscar (meditar, estudar), fazer e falar.

A doutrina tem por objetivo apontar para Deus e dar glória a ele. É isso que você percebe na carta aos Romanos. Paulo, após 11 capítulos expondo a doutrina da salvação, terminou extasiado, dizendo:

“Ó profundidade da riqueza, tanto da sabedoria como do conhecimento de Deus! Quão insondáveis são os teus juízos, e quão inescrutáveis, os seus caminhos! Quem, pois, conheceu a mente do Senhor? Ou quem foi o seu conselheiro? Ou quem primeiro deu a ele para que lhe venha a ser restituído? Porque dele, e por meio dele, e para ele são todas as coisas. A ele, pois, a glória eternamente. Amém!” (Rm 11.33-36).

Quando o estudo da Teologia não conduz você à adoração e obediência, para a glória de Deus, ele é vão e apenas acrescenta sobre a sua cabeça maior condenação.

Aqueles que se preocupam em espalhar a boa doutrina estão certos, mas, se querem honrar a Deus, precisam estar ligados a uma igreja e comprometidos com ela. Ser membro do corpo de Cristo não é opcional para o cristão.

Da mesma forma, devem amar a Cristo e aos irmãos, e isso se refletirá até mesmo nas discussões teológicas, onde o objetivo não será mais vencer o debate, mas dar glória a Deus e levar irmãos ao entendimento da verdade.

A doutrina reformada, por ser bíblica, é bela! Entretanto, ela não aponta para si mesmo, mas para aquele que é a sua fonte, o Soberano Deus e Pai do nosso Senhor Jesus Cristo.

Creia, adore e faça! Não tente fazer sem crer, tampouco sem dar glória a Cristo, a fim de não cair no erro de, ao querer “reformar” a Igreja, acabar prejudicando e trazendo transtornos, além de ser achado em falta diante de Deus.

Milton C. J. Junior

quinta-feira, 31 de outubro de 2019

Você não precisa conhecer o futuro, mas o Senhor

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Em meu primeiro ano de ministério, estive numa região em que, infelizmente, algo se repetia constantemente. Era encontrar os pastores em alguma reunião que logo vinha a pergunta: “Você crê em revelação?”, ao que eu já respondia categoricamente com um sonoro “não”. Digo infelizmente porque pastores presbiterianos deveriam, por dever de ofício na IPB, ser confessionais e, para ser ordenados precisam, necessariamente, subscrever a Confissão de Fé e os Catecismos de Westminster que são documentos cessacionistas.

Em um determinado encontro, resolvi responder à pergunta de forma diferente, buscando conversar mais acerca do assunto. Um pastor se aproximou e já soltou: “Você crê em revelação?”. Desta vez eu disse: “sim, é claro!”, deixando-o animado com a resposta. Logo, então, continuei: “Creio em revelação, inclusive já a li hoje pela manhã!”

De repente, a animação inicial transformou-se num olhar de decepção. O irmão explicou que estava falando de outro tipo de revelação e eu pedi que ele me explicasse mais sobre sua crença. Segundo ele, a revelação à qual se referia dizia respeito a eventos futuros na vida de alguém. O exemplo que ele me deu foi de alguém que iria viajar e que recebeu uma “revelação” na igreja. Foi dito a ele que se ele viajasse, um acidente aconteceria na estrada causando-lhe a morte.

Diante disso, perguntei: “Então este irmão tinha duas opções pela frente: se ele viajasse, morreria, se não viajasse, permaneceria vivo, é isso mesmo?”, ao que o pastor me respondeu afirmativamente. Perguntei, então, acerca do Salmo 139, em que Davi afirma: “Os teus olhos me viram, a substância ainda informe, e no teu livro foram escritos os meus dias, cada um deles escrito e determinado, quando nem um deles havia ainda” (Sl 139.16). Como entender esse texto em relação ao futuro incerto do irmão que recebeu a revelação? Daquele momento em diante reinou o silêncio. Parecia que aquele pastor nunca tinha pensado acerca da implicação do seu entendimento sobre revelação “particular”.

Como ele, muitos cristãos não param para pensar em sua crença e em como elas podem colocá-los em confronto com a Palavra de Deus. Nesse caso, em particular, parece que o desejo de saber sobre o futuro, de ter um direcionamento “mais seguro” por uma revelação direta de Deus, pode ser uma explicação para um entendimento tão distante da Palavra de Deus. A ideia de Deus estar direcionando a vida por meio de uma revelação específica sobre as escolhas a serem tomadas e seus desdobramentos parece dar mais “segurança”, além de retirar das pessoas a responsabilidade ou, no mínimo, fornecer um bom álibi diante das consequências.

Por exemplo, se eu deixo de viajar para um compromisso importante porque Deus me revelou que eu morreria na estrada se fosse, quem me recriminaria pela decisão de não ir, ainda que tenha faltado com minha palavra? E, ainda que houvesse repreensão, eu ficaria em paz comigo mesmo, afinal de contas, eu somente “ouvi a voz de Deus”.

Voltei a pensar nisso dia desses, enquanto dirigia para o escritório ouvindo no carro a narração do livro de Atos. Importa lembrar aqui que em Atos a revelação ainda não está completa e os livros do Novo Testamento estão sendo escritos. Os dons revelacionais estão em plena atividade. Hoje, cremos (pelo menos os que subscrevem a Confissão de Westminster) que “foi o Senhor servido, em diversos tempos e diferentes modos, revelar-se e declarar à sua Igreja aquela sua vontade; e depois, para melhor preservação e propagação da verdade, para o mais seguro estabelecimento e conforto da Igreja contra a corrupção da carne e malícia de Satanás e do mundo, foi igualmente servido fazê-la escrever toda. Isso torna indispensável a Escritura Sagrada, tendo cessado aqueles antigos modos de revelar Deus a sua vontade ao seu povo” (CFW I.I).

Dito isso, pense na experiência de Paulo, descrita em Atos 21. Ele estava em Cesareia, na casa de Filipe, quando o profeta Ágabo chegou da Judeia. Ágabo pegou o cinto de Paulo “ligando com ele os próprios pés e mãos [e] declarou: Isto diz o Espírito Santo: Assim os judeus, em Jerusalém, farão ao dono deste cinto e o entregarão nas mãos dos gentios” (At 21.8-11).

Diante de tal revelação, Lucas registra que todos eles pediram a Paulo para não ir à Jerusalém. Isso é totalmente compreensível. Diante do anúncio da prisão em Jerusalém os amigos estavam preocupados.

A resposta e a atitude de Paulo nesta situação têm muito a ensinar, sobretudo a irmãos como o da experiência narrada no início deste texto. O apóstolo questionou: “Que fazeis chorando e quebrantando-me o coração? Pois estou pronto não só para ser preso, mas até para morrer em Jerusalém pelo nome do Senhor Jesus”. Após a Palavra de Paulo, Lucas diz: “Como, porém, não o persuadimos, conformados, dissemos: Faça-se a vontade do Senhor!” (At 21.13-14).

A pergunta a ser feita aqui é: Por que é que Paulo, mesmo sabendo o que aconteceria com ele em Jerusalém, não deixou de cumprir o seu ministério (Cf. At 20.24)? Como se manteve fiel à sua responsabilidade?

A resposta é simples, quando Paulo foi comissionado por Deus, ele ouviu, da parte do Senhor, que ele levaria o nome do Senhor perante gentios e reis e aprenderia o “quanto [...] importa sofrer pelo meu nome” (At 9.15-16). Ele mesmo havia afirmado: “vou para Jerusalém, não sabendo o que ali me acontecerá, senão que o Espírito Santo, de cidade em cidade, me assegura que me esperam cadeias e tribulações” (At 20.22-23).

Paulo toma sua decisão pautado na Palavra que o Senhor lhe dera. A consciência, por meio de uma revelação, do que o esperava, não fez o apóstolo deixar de cumprir o seu chamado, pensando em “mudar a sua sorte” e livrar-se do que o Senhor disse que ocorreria.

Tendo os antigos meios de Deus revelar a sua vontade cessado (Hb 1.1-2) temos tudo aquilo de que precisamos para direcionar a nossa vida na Santa Palavra de Deus. Como afirmou Moisés, “as coisas encobertas pertencem ao Senhor, nosso Deus, porém as reveladas nos pertencem, a nós e a nossos filhos, para sempre, para que cumpramos todas as palavras desta lei” (Dt 29.29).

É triste perceber que muitos que buscam novas revelações para direcionar suas vidas, pouco conhecem daquilo que o Senhor fez registrar nas Escrituras e, exatamente por isso, têm práticas que vão contra a Palavra.

Não precisamos conhecer o futuro. Precisamos conhecer o Senhor Jesus Cristo, como revelado em sua Palavra. Busque, com a iluminação do Espírito de Cristo, encher seu coração da Palavra de Deus a fim de honrá-lo em suas práticas e decisões. Em Cristo, você está seguro!

Milton C. J. Junior

quinta-feira, 24 de outubro de 2019

Vivendo e aprendendo

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O título faz alusão a um dito popular bastante conhecido. Não é difícil encontrar pessoas que, ao passar por situações que acabaram por fazê-las rever conceitos, mudar de atitudes ou descobriram algo novo, costumam logo dizer: “vivendo e aprendendo” ou “é vivendo que se aprende”.

Para muitos, este é o grande lema da vida! Pessoas assim entendem que o aprendizado só é possível à medida em que se vive experiências diversas, sejam elas quais forem.

Entretanto, para aqueles que confessam a Cristo as coisas não precisam ser assim. Na verdade, a Escritura aponta para outro caminho, a saber, “Aprenda para viver”. Você pode verificar isso olhando para a carta de Paulo aos Romanos. Ali o apóstolo afirma que “tudo quanto, outrora foi escrito, para o nosso ensino foi escrito” – e já demonstra a finalidade disso – “a fim de que, pela paciência e pela consolação das Escrituras, tenhamos esperança” (Rm 15.4).

Olhe também para a primeira carta aos coríntios e esta verdade fica ainda mais clara. Você sabe que a igreja de Corinto tinha muitos problemas de pecado que iam desde divisões, passando por imoralidade, soberba e chegando ao ponto de irmãos levarem uns aos outros ao litígio diante de incrédulos.

A despeito disso, aquela igreja se via como muito espiritual e, por isso, no capítulo 10, Paulo lembra àqueles irmãos de várias experiências espirituais vividas pelo povo de Israel no deserto mostrando que, apesar de todas essas experiências, “Deus não se agradou da maioria deles, razão por que ficaram prostrados no deserto” (1Co 10.1-5).

O objetivo de Paulo relatar isso é bem claro. Ele mesmo diz: “Ora, estas coisas se tornaram exemplos para nós, a fim de que não cobicemos as coisas más, como eles cobiçaram” (1Co 10.6). Aqueles irmãos e nós temos o grande privilégio de ter acesso a tudo aquilo que o Senhor mandou registrar em sua bendita Palavra para vivermos uma vida reta aos seus olhos.

Não precisamos passar pelo mesmo que passaram irmãos nossos do passado. Seus erros e a forma como Deus os tratou estão diante de nossos olhos e precisamos aprender com a história para viver de modo digno do evangelho de Cristo. Muitos dos nossos irmãos do passado já caíram em pecados que nós poderíamos evitar se atentássemos para a história e crêssemos de todo o coração no que Deus ordena em sua Palavra, afinal de contas, ela nos foi dada para ser a lâmpada para os nossos pés e a luz para o nosso caminho (Sl 119.105).

Mas, infelizmente, não são poucas as vezes que, mesmo sabendo o que está na Escritura, acabamos por tomar caminhos segundo os desejos e inclinações pecaminosas do nosso coração. Desejos e inclinações totalmente opostos ao que o Senhor revela em sua Palavra.

Quando isso acontece, certamente somos corrigidos pelo Senhor. O escritor da epístola aos Hebreus lembra os seus leitores, que estavam tentados a desistir de sua caminhada por causa das perseguições: “Ora, na vossa luta contra o pecado, ainda não tendes resistido até ao sangue e estais esquecidos da exortação que, como a filhos, discorre convosco: Filho meu, não menosprezes a correção que vem do Senhor, nem desmaies quando por ele és reprovado; porque o Senhor corrige a quem ama e açoita a todo o filho a quem recebe. É para a disciplina que perseverais (Deus vos trata como filhos); pois que filho há que o pai não corrige?” (Hb 12.47).

O resultado dessa correção é maravilhoso. Ainda que passemos por aflições, seremos levados à Palavra do Senhor. “Foi-me bom ter eu passado pela aflição, para que aprendesse os teus decretos” (Sl 119.69), disse o salmista.

Tudo isso ocorrerá, pois aquele que começou a obra de redenção em nossa vida certamente a completará até a vinda do Senhor Jesus Cristo (Fp 1.6).

Ele nos concedeu a sua Palavra a fim de aprendermos a viver de modo digno do Evangelho. Ele nos deu o seu Espírito que nos guia a toda a verdade (Jo 16.13). Ele nos disciplinará sempre que necessário, a fim de voltarmos ao caminho.

Portanto, cuidemos de nos dedicar ao conhecimento da Escritura, a Palavra viva e eficaz de Deus (Hb 4.12). É o conhecimento da Lei do Senhor que nos habilitará a cumprir o papel de testemunhas que nos foi outorgado, vivendo como sal da terra e luz do mundo.

Aprenda para viver para a glória de Deus junto à sua família, na vida em sociedade, nos seus negócios. Essa é a vida abundante que o Senhor Jesus nos deu. Quando Josué assumiu o comando do povo de Deus para levá-lo à terra prometida, ouviu do Senhor que não deveria cessar de falar sobre o Livro da Lei, mas antes disso ele deveria meditar “nele dia e noite, para que tenhas o cuidado de fazer segundo tudo quanto nele está escrito” (Js 1.8). A promessa que decorreu dessa ordem à Josué foi: “então, farás prosperar o teu caminho e serás bem-sucedido”.

Aqueles que aprendem para viver serão semelhantes ao homem bem-aventurado do salmo primeiro, cujo prazer está na lei do Senhor, na qual medita dia e noite e “tudo quanto ele faz será bem sucedido” (1.3c). Aqueles que, mesmo conhecendo a Escritura, tentam trilhar seus próprios caminhos, serão disciplinados e santificados pelo Senhor.

Você pode aprender para viver e ser abençoado ou viver para aprender, sendo disciplinado pelo Senhor. Neste caso, a bênção é que, ainda que a disciplina, no momento não seja motivo de alegria, ao final produzirá fruto de justiça (Hb 12.11). Escolha o seu caminho!

Milton C. J. Junior

quinta-feira, 17 de outubro de 2019

Deus nos deu spoiler

Eu gostava muito, por achar bastante criativa, de uma propaganda antiga de certo aparelho videocassete que mostrava uma criança correndo de um lado para o outro na frente da fila que se formou em frente à bilheteria do cinema e que gritava: “a mocinha morre no fina-al!”, “quem matou foi o marido, quem matou foi o marido”, enquanto fazia careta para os que estavam na fila e que olhavam para ele com cara de frustrados.

O objetivo da propaganda era mostrar que a forma mais segura de assistir a um filme sem alguém estragar, contando o final, era em casa, no videocassete. Em meados da década de 90, o spoiler era assim, ao vivo. Spoiler é a revelação de informações sobre o conteúdo de livros ou filmes a quem ainda não os tenha lido ou assistido.

Os tempos mudaram, mas a maioria das pessoas continua não gostando de spoilers. Em tempos de rede social e sites de entretenimento, não é incomum quando alguém vai fazer comentários a respeito de filmes avisar de antemão: “Atenção! Contém spoiler!”, a fim de não se acusado de ser estraga-prazeres pelos leitores desavisados.

Saber de antemão o final de um filme faz perder toda a graça, tira toda a emoção e surpresa e muitos até desanimam de assistir. O interessante é ir descobrindo o que acontecerá, como o mocinho conseguirá se safar e de que maneira os fatos se “encaixarão” no enredo.

Curiosamente, o que é esperado ao se assistir um filme não é apreciado na vida real. Nela não queremos surpresas. Queremos que as coisas aconteçam exatamente como planejamos e quando as mínimas coisas saem do controle vêm o estresse, a irritação, o desânimo, a ansiedade, a depressão, etc.

Um acidente de trânsito que causa atraso em um compromisso leva um homem à ira; a notícia de uma doença séria traz ansiedade e desânimo; a incapacidade de um pai ou uma mãe de saber onde está o filho que ainda não chegou no destino e que não atende o celular leva os nervos à flor da pele, a instabilidade financeira e a falta de perspectivas levam jovens a questionar se a vida vale a pena...

Há um problema ainda maior. Por mais que não gostemos de que as coisas saiam do controle, não temos a mínima capacidade de controlar as circunstâncias de nossa vida. Diante disso, Tiago exorta: “Atendei, vós que dizeis: Hoje ou amanhã iremos para a cidade tal, e lá passaremos um ano, e negociaremos, e teremos lucros. Vós não sabeis o que sucederá amanhã. Que é a vossa vida? Sois, apenas, como neblina que aparece por instante e logo se dissipa” (Tg 4.13-14). A realidade é que não sabemos nem quanto tempo de vida teremos.

As palavras de Tiago poderiam levar alguns a uma angústia inquietante e uma preocupação diária com o dia de sua morte. Entretanto, ele continua: “Em vez disso, devíeis dizer: Se o Senhor quiser, não só viveremos, como também faremos isto ou aquilo” (Tg 4.15). Note que não há problema no planejamento em si, ele é até estimulado nas Escrituras. O problema está em achar que as coisas acontecerão de acordo com a nossa vontade, mesmo sabendo que “o coração do homem traça o seu caminho, mas o Senhor lhe dirige os passos” (Pv 16.9). Tiago exorta seus leitores a confiar no Senhor.

No grande filme da vida, o autor, produtor e diretor é o grande Deus e Pai do nosso Senhor Jesus Cristo e para que pudéssemos estar bem seguros ele nos deu “spoiler”. Pedro afirma que tudo o que necessitamos para vida e piedade já nos foi doado na revelação de Jesus Cristo. Em Cristo, foram doadas as grandes promessas de Deus, a fim de que nos livremos das paixões do mundo (cf. 2Pe 1.3-4). Paulo diz que “tudo quanto, outrora, foi escrito para o nosso ensino foi escrito, a fim de que, pela paciência e pela consolação das Escrituras, tenhamos esperança” (Rm 15.4).

Desde o início, Deus tem dado promessas que dão segurança ao que crê. Ao primeiro casal, após a queda, ele afirmou que da mulher viria aquele que iria esmagar a cabeça da serpente (Gn 3.15). No decorrer da revelação do Antigo Testamento, muitos outros aspectos acerca do Messias foram dados. Ele viria da tribo de Judá (Gn 49.10), nasceria de uma virgem (Is 7.14), na cidade de Belém (Mq 5.2), seria o próprio Deus Forte sobre os ombros de quem estaria o governo (Is 9.6), morreria pelos pecados daqueles que ele graciosamente justificaria (Is 53) e essas são apenas algumas das profecias.

Ainda assim, em seu ministério, Jesus foi confrontado por muitos, incluindo mestres da lei, que questionavam quem ele era. Em uma dessas ocasiões o Senhor afirmou: “Errais, não conhecendo as Escrituras nem o poder de Deus” (Mt 22.29). Para saber a respeito daquele que ali estava, era necessário conhecer o que Deus houvera revelado.

Jesus morreu, conforme as Escrituras, e ressuscitou, conforme as Escrituras (1Co 15.3-4). Se, como eu, você crê nisso, sabe que o Senhor cumpriu cada palavra dita de antemão. Isso, por si só, deveria ser motivo suficiente para estarmos seguros, deixarmos de lado as preocupações, termos alegria a despeito das circunstâncias e confiar de todo o coração em nosso Redentor.

Mas o Senhor nos revela muito mais. Pela Escritura, sabemos que teremos aflições (Jo 16.33), que podemos ser perseguidos (2Tm 3.12), que estaremos expostos às tentações (Lc 22.40), que por amor do Senhor somos entregues à morte o dia todo (Rm 8.36), etc. Entretanto, sabemos também que “em todas essas coisas, porém, somos mais que vencedores por meio daquele que nos amou” (Rm 8.37), que nada pode nos separar do amor de Deus que está em Cristo (Rm 8.38-39), que a boa obra iniciada em nós será completada (Fp 1.6), que estamos sendo santificados para ser apresentados como sua noiva, Igreja gloriosa (Ef 5.27), que todas as coisas cooperam para o nosso bem (Rm 8.28), que até mesmo os nossos fios de cabelo estão contados (Mt 10.30). Mais ainda, temos a garantia de que o Senhor estará conosco “todos os dias até à consumação dos séculos” (Mt 28.28).

Diante das angústias, das lutas e dos dilemas da vida, quando as coisas parecerem estar fora de controle, lembre-se destas promessas. Lembre-se de que o final não é incerto. O grande autor do filme da vida já nos contou o final:

Vi novo céu e nova terra, pois o primeiro céu e a primeira terra passaram, e o mar já não existe. Vi também a cidade santa, a nova Jerusalém, que descia do céu, da parte de Deus, ataviada como noiva adornada para o seu esposo. Então, ouvi grande voz vinda do trono, dizendo: Eis o tabernáculo de Deus com os homens. Deus habitará com eles. Eles serão povos de Deus, e Deus mesmo estará com eles. E lhes enxugará dos olhos toda lágrima, e a morte já não existirá, já não haverá luto, nem pranto, nem dor, porque as primeiras coisas passaram. E aquele que está assentado no trono disse: Eis que faço novas todas as coisas. E acrescentou: Escreve, porque estas palavras são fiéis e verdadeiras (Ap 21.1-5).

Deus nos deu spoiler, mas este não causa frustração e desânimo em ver o filme, antes nos enche de esperança, segurança e nos faz ansiar pelo grande final, por aquele que diz: “Certamente, venho sem demora. Amém!” por isso clamamos – “Vem, Senhor Jesus!”.

Milton C. J. Junior

quinta-feira, 10 de outubro de 2019

Amar a quem?

Em nossos dias a palavra “amor” tem perdido completamente o seu sentido e isso ocorre porque a compreensão sobre ela é equivocada. Um poeta secular, ao falar sobre esse assunto, expressa sua compreensão dizendo que o amor não é imortal, posto que é chama, mas deve ser infinito enquanto durar.

Isso se agrava ainda mais quando não se têm uma compreensão bíblica sobre o alvo do amor. A ênfase no amor-próprio como requisito para outras “conquistas” é difundida por todos os lados. Uma música da década de 80 serve para exemplificar isso, na última estrofe e no refrão temos:

Foi tão difícil pra eu me encontrar,

é muito fácil um grande amor acabar,

mas eu vou lutar por esse amor até o fim

não vou mais deixar eu fugir de mim.

Agora eu tenho uma razão pra viver,

agora eu posso até gostar de você.

Completamente eu vou poder me entregar,

é bem melhor você sabendo se amar.

Eu me amo, eu me amo,

não posso mais viver sem mim”[

Eu me amo - Ultraje a rigor] (grifos meus)

Essa forma de pensar é encontrada também nas igrejas que assumiram o “dogma” da autoajuda.

A Escritura, porém, caminha na contramão de tudo isso. Vemos no Evangelho que, ao ser questionado por um intérprete da Lei sobre qual seria o grande mandamento, Jesus respondeu que o principal era amar a Deus de todo o coração, alma e entendimento e que o segundo era amar ao próximo como a si mesmo. Disse mais ainda: “Destes dois mandamentos dependem toda a Lei e os Profetas” (Mt 22.40). Devemos notar que Jesus não fala em momento algum de amor próprio, ainda que muitos tentem enxergar no texto este “terceiro mandamento”, demonstrando um total descompromisso com a interpretação do texto.

O mais espantoso é perceber que raciocínio dos cristãos que pensam assim é semelhante ao do autor da música citada acima: se alguém não se ama não conseguirá amar o próximo.

Esse “terceiro mandamento” não está no texto por uma simples razão: o homem, por natureza, já se ama demais e não precisa ser estimulado a se amar mais ainda. Jesus parte do princípio de que esse amor por si mesmo já existe. As palavras de Paulo corroboram esse pensamento. O apóstolo afirma: “Porque ninguém jamais odiou a própria carne; antes, a alimenta e dela cuida” (Ef 5.29).

Quando a Escritura menciona o amor próprio, trata-o como um problema: “Sabe, porém, isto: nos últimos dias, sobrevirão tempos difíceis, pois os homens serão egoístas (amantes de si mesmos na versão Revista e Corrigida de Almeida)” (1Tm 3.1,2), afirma Paulo a Timóteo.

A despeito disso, várias publicações cristãs e inúmeros pregadores têm afirmado que o homem deve amar a si mesmo. Com isso, ensinam que o homem precisa fazer justamente aquilo que a Escritura aponta como um dos males dos últimos tempos.

Se queremos honrar a Deus agindo de forma bíblica precisamos entender o que a Escritura, de fato, ensina sobre o amor e o que ela requer que façamos. Somos alvo do amor maior, o amor do Senhor demonstrado na cruz do Calvário, e, por isso, podemos e devemos amá-lo da forma correta, colocando-o em primeiro lugar em nossas vidas e também dispensando esse amor ao próximo.

Segundo Paulo, “o amor é paciente, é benigno; o amor não arde em ciúmes, não se ufana, não se ensoberbece, não se conduz inconvenientemente, não procura os seus interesses, não se exaspera, não se ressente do mal; não se alegra com a injustiça, mas regozija-se com a verdade; tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta. O amor jamais acaba” (1Co 13.4-8). Esse amor deve ser sem hipocrisia (Rm 12.9), cordial, fraternal, preferindo o próximo em honra (Rm 12.10), edificante (1Co 8.1), demonstrado de fato e de verdade (1Jo 3.18).

Somos exortados a não nos conformar com este século (Rm 12.1-2) e, por isso, devemos deixar de lado o que o mundo ensina sobre o amor egoísta (amor próprio) e viver o amor bíblico, por Deus e pelo próximo, para a glória daquele que nos amou primeiro.

Milton C. J. Junior

terça-feira, 1 de outubro de 2019

Tenha bons argumentos, mas... confie no Senhor!

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Dia desses vi uma postagem no Facebook em que um cristão tenta colocar os ateus em maus lençóis. O meme era mais ou menos assim: mostrava um ateu dizendo que não é possível provar que Deus existe, seguido de um texto em que se pedia para refutar uma série de argumentos como o “argumento ontológico”, o “argumento teleológico”, o “argumento do desígnio”, dentre muitos outros, com uma imagem do ateu com cara de espanto depois disso tudo.

A ideia da imagem é refutar o argumento ateu de que cristãos têm uma crença sem fundamento algum. Em seu precioso livro, Crer é também pensar, John Stott afirma que “é um grande erro supor que a fé e a razão são incompatíveis. A fé e a visão são postas em oposição, uma à outra, nas Escrituras, mas nunca a fé e a razão. Pelo contrário, a fé verdadeira é essencialmente racional, porque se baseia no caráter e nas promessas de Deus. O crente em Cristo é alguém cuja mente medita e se firma nessas certezas”.

Stott acerta em cheio. As Escrituras não nos chamam à uma fé cega ou à um “salto no escuro”. O apóstolo Pedro ordena aos cristãos que santifiquem a Cristo no coração, “estando sempre preparados para responder (no grego, apologia = argumento raciocinado) a todo aquele que pedir razão da esperança que há em vós” (1Pe 3.15).

Entretanto, ainda que eu saiba que a fé cristã não é irracional nem ilógica, preocupo-me como fato de muitos cristãos estarem entrando em uma guerra contra ateus apenas para não parecerem bitolados, esquecendo-se que até a apologética (explicação e defesa da fé) deve ter como fim a glória de Deus e o desejo de levar pecadores aos pés do Redentor. A defesa da fé preocupada apenas em provar a existência de Deus, sem apontar para Cristo, pode até levar ateus a se tornarem teístas, mas teístas que não creem no “único Deus verdadeiro” e em Jesus Cristo, enviado por ele (cf. Jo 17.3), terão o mesmo destino dos ateus, a danação eterna.

É preciso crer em Cristo, como diz a Escritura (Jo 7.38) e essa fé salvadora, apesar de racional, é dom de Deus (Ef 2.8). A pregação cristã requer bons argumentos, mas, em última instância, depende totalmente daquele que pode abrir os corações. Uma pessoa pode chegar à conclusão de que a fé cristã é plausível, de que ela faz sentido e, ainda assim, não crer em Cristo.

Penso que um bom exemplo do que eu estou afirmando aqui pode ser visto no episódio em que Paulo discursa perante o rei Agripa, registrado no capítulo 26 de Atos dos apóstolos. Ele inicia sua defesa dizendo-se feliz por poder falar de sua fé diante de Agripa que era “versado em todos os costumes e questões que há entre os judeus” (26.3).

No começo do seu arrazoado Paulo fala sobre sua vida como fariseu, o que era de conhecimento de todos os judeus, e de que estava sendo julgado por causa da esperança na promessa que Deus havia feito aos seus antepassados. Em sua caminhada ele havia se oposto à igreja perseguindo os santos, castigando-os, obrigando-os a blasfemar, tendo, inclusive, prendido a muitos e dado o seu voto para que outros tantos fossem mortos (26.6-11).

O apóstolo passa, então, a narrar sua conversão, no caminho de Damasco, e seu chamado para ser ministro e testemunha de Cristo. Paulo afirma ao rei não ter sido desobediente e conta de como começou a proclamar a Cristo, o que estava fazendo também perante Agripa (26.12-23).

Nesse ponto Paulo é interrompido por Festo que o acusa de estar louco e delirando, por conta das “muitas letras”. Diante disso, ele afirma o que quero destacar para provar meu ponto: “Não estou louco, ó excelentíssimo Festo! Pelo contrário, digo palavras de verdade e de bom senso (26.25). Repare bem o que Paulo diz. Ele afirma que está falando a verdade. Suas palavras fazem sentido, elas têm nexo, coerência e são plausíveis. O apóstolo afirma ainda que tudo o que estava dizendo era de conhecimento de Agripa (que ele já havia dito que era versado nos costumes e questões dos judeus), e dirige uma pergunta diretamente ao rei: “Acreditas, ó rei Agripa, nos profetas? Bem sei que acreditas” (26.27).

Com esta pergunta Paulo está colocando o rei em xeque. Conhecedor como era dos costumes judeus e exposto ao arrazoado de Paulo, ele deveria render-se à argumentação, mas, diferente do que eu já li alhures, de que Agripa era um “quase salvo”, mas fatalmente perdido, tendo “quase” crido no evangelho, ele responde com ironia. A tradução da NVI capta bem o sentido do que ele diz: “Você acha que em tão pouco tempo pode convencer-me a tornar-me cristão?” (26.28).

A resposta de Paulo não deixa dúvidas de que, a despeito de bons argumentos, a obra de convencimento do pecador pertence a Deus: Assim Deus permitisse que, por pouco ou por muito, não apenas tu, ó rei, porém todos os que hoje me ouvem se tornassem tais qual eu sou, exceto estas cadeias” (26.29 – ênfase minha), e é assim que devemos crer.

Portanto, tenha bons argumentos e dedique-se ao estudo sério e sistemático das Escrituras. Não deixe, entretanto, que isso o conduza ao orgulho e a soberba de achar que são os seus bons argumentos que convencerão pecadores a crer no Deus da Bíblia. Essa é uma obra exclusiva do Espírito de Deus, que muda corações. Confie nele!

Milton C. J. Junior

quarta-feira, 18 de setembro de 2019

Debates, torcidas e a glória de Deus

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Definitivamente, sou fã de debates. Creio que eles são uma excelente forma de entender melhor determinado assunto. Para o cristão, os debates teológicos deveriam ser um meio de crescimento na fé e também de convencimento do erro. Se, para nós, a Escritura é a Palavra final em termos de doutrina, nada mais natural que conversar (ou debater, se preferir esse termo) a respeito de doutrinas contrárias. O objetivo, com isso, deveria ser levar o irmão que assumimos estar errado ao entendimento correto a respeito das Escrituras, para a glória de Deus e edificação do próximo.

Entretanto, algo tem me incomodado bastante nos últimos tempos. Com o advento da internet e a facilidade de acesso à rede mundial de computadores houve um aumento expressivo de fóruns de debate, inclusive sobre a fé. Junto com isso, programas no rádio e na TV colocam irmãos de tradições teológicas diferentes para debaterem acerca do seu entendimento das Escrituras. Até aí, tudo bem, o problema é o que, muitas vezes, decorre disso.

Primeiro pensemos no espírito dos debatedores. A mim parece que, não poucas vezes, o desejo não é estabelecer a verdade, mas, simplesmente, provar que se está certo. Há uma grande diferença entre essas duas coisas e tem a ver com as motivações. A primeira diz respeito à honra devida àquele é revelado nas Escrituras na pessoa de Cristo Jesus, que afirmou ser a própria Verdade. Deus é honrado quando sua verdade é entendida. A segunda, porém, diz respeito à honra do debatedor. O fim do debate seria somente deixar bem claro como eu entendo as Escrituras melhor que meu irmão. Aquela, traz glória a Deus, esta tenta glorificar a inteligência humana.

Lembro que certo debatedor, famoso por defender os cinco pontos do calvinismo, foi perguntado em um debate sobre a razão de não ser arminiano. Prontamente ele respondeu que não era arminiano porque tinha uma Bíblia em casa e a lia. Agora pense bem. A resposta lança por terra a própria doutrina defendida que ensina que o homem, totalmente depravado, não busca a Deus e não tem condições de achegar-se a ele, daí a necessidade de o Senhor soberanamente escolher os eleitos e chamá-los eficazmente por seu Espírito, dada a incapacidade deles. Toda a glória na salvação dos homens é do Senhor, mas parece, pelo menos olhando para esta resposta, que isso só vale para a salvação. No quesito entendimento doutrinário, o que vale mesmo é a inteligência. O outro é arminiano porque não sabe ler!

Quando Pedro respondeu à pergunta de Jesus a respeito de quem eles (os discípulos) achavam que ele era dizendo: “Tu és o Cristo, o Filho do Deus vivo” (Mt 16.16), não ouviu do Mestre: “Parabéns Pedro! Vejo que você tem uma Bíblia em casa e a lê”. Definitivamente não! Sabemos que o que foi dito por Jesus foi: “Bem-aventurado és, Simão Barjonas, porque não foi carne e sangue que to revelaram, mas meu Pai, que está nos céus” (Mt 16.17). Sendo o homem incapaz de reconhecer o Salvador, fica dependendo exclusivamente de Deus para a sua salvação. É essa a verdade que lemos nas Escrituras e que, sistematizada, acabou ganhando o nome de “calvinismo”.

Convenhamos, insinuar que o opositor não tenha uma Bíblia ou chama-lo de analfabeto por ser arminiano não é nem educado nem bíblico, afinal, o Senhor Jesus afirmou que “quem proferir um insulto a seu irmão estará sujeito a julgamento do tribunal” (Mt 5.22).

Se em um debate você está pronto a escarnecer e humilhar a seu irmão, seu esforço não é para estabelecer a verdade, glorificar a Deus e amar o próximo, mas para provar que suas ideias (que podem até ser bíblicas, em muitos casos) são as corretas. Neste caso, o amor às ideias, mais do que o amor ao Senhor está governando o seu coração, a ponto de você pecar para chegar a seu objetivo. Biblicamente isso é idolatria, o que acaba tornando a própria verdade em uma palavra torpe, pois, como ordenou Paulo, a palavra que sai de nossa boca dever ser “unicamente a que for boa para a edificação, conforme a necessidade”, a fim de transmitir graça aos que ouvem (Ef 4.29).

Ao entrar em um debate, faça a mesma petição de Davi: “Também da soberba guarda o teu servo, que ela não me domine; então, serei irrepreensível e ficarei livre de grande transgressão. As palavras dos meus lábios e o meditar do meu coração sejam agradáveis na tua presença, Senhor, rocha minha e redentor meu!” (Sl 19.13,14).

Mas há ainda uma outra questão, referente agora àqueles que “estão sendo representados” pelos debatedores (aqui no caso de um debate na TV, por exemplo). Ainda que no debate os irmãos (oponentes?) tenham por fim a glória de Deus e a edificação do próximo, buscando estabelecer a verdade ao submeter-se às Escrituras, há sempre o perigo de as “torcidas” levarem para o outro lado. Estou chamando de torcidas porque ultimamente é exatamente isso que vejo em alguns fóruns. Quase dá para vê-las exaltando seus debatedores prediletos com gritos de “olê, olê, lá, Fulanô, Fulanô...

Só para exemplificar, o vídeo com a resposta mal educada do “pastor que sabe ler” foi compartilhado milhares de vezes e em várias dessas vezes podia se ler “calvinista humilha arminiano” e outras frases como essas ou com palavras que não vale a pena nem lembrar, numa clara tentativa de ridicularizar e humilhar irmãos que ainda não chegaram ao entendimento correto da doutrina, pelo menos na opinião dos calvinistas, nos quais estou incluído.

A humilhação de irmãos que não entenderam certos pontos da fé não traz glória alguma ao Senhor Jesus Cristo. Talvez alguém diga, mas os arminianos fazem o mesmo! É, muitos deles sim, mas o pecado do outro não torna o meu desculpável. Além do mais, não estou me referindo apenas a esse tipo de debate. Calvinismo x arminianismo foi usado aqui somente para ilustrar o que pode acontecer quando o único objetivo é provar que determinado grupo está com a razão, que é mais inteligente, que é mais fiel, etc.

Esse comportamento de torcida organizada, por partes daqueles que se veem representados por Fulano, Beltrano ou Sicrano em um debate, além de desonrar a Deus, serve também para tentar esses irmãos debatedores a terem seus egos exaltados, pensando acerca de si mesmo além do que convém (Rm 12.3). Além do mais, torcedores falam mais sobre seus ídolos que sobre o Senhor Jesus Cristo.

Reitero, debates podem ser uma boa forma de crescer na fé e de convencer irmãos do erro, com vistas à honra do nome de Cristo e edificação do povo de Deus. Contudo, diante das tentações que estão envolvidas nessa situação, cuide para não fazer do debate uma maneira de humilhar outros, de provar que é mais inteligente ou de exaltar homens a ponto de eles aparecerem mais que o Redentor. Se a glória de Cristo não nortear seu pensamento, não convém debater.

Milton C. J. Junior

terça-feira, 10 de setembro de 2019

Motivos, emoções e idolatria

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Certa vez me perguntaram se no céu teríamos lembrança daquilo que ocorreu em nossa vida e das pessoas que conhecemos. Sei que esse é um assunto controverso e que há posições bem diferentes, mas no meu entender não sofreremos de amnésia, lembraremos de tudo, sim. Ouvi como resposta que se for desse jeito ficaremos tristes no céu. A razão é que, lembrando de tudo, vamos saber caso algum parente nosso não esteja lá e certamente isso nos entristecerá.

Enquanto escrevo estas primeiras linhas, vem à minha mente uma conversa que tive com uma amiga, bem no começo da minha caminhada cristã. Na ocasião discutíamos a afirmação de um pregador que havia dito que homens de cabelo comprido não iriam para céu. Como ela pertencia a uma igreja que confundia “usos e costumes” com a própria Escritura, a conversa acabou girando em torno dos tais. No fim perguntei se eu, não observando os mesmos “costumes” que ela, mas crendo em Cristo, poderia ir para o céu e ouvi: “até pode ir, mas vai ficar com inveja porque meu galardão será maior”. Como novo convertido, limitei-me a responder que não iria para o mesmo céu que ela, pois para o que iria não haveria pecado.

Minha intenção neste texto não é tentar provar se no céu haverá lembrança de tudo (apesar de eu crer assim), tampouco discutir se homens podem ou não ter as madeixas crescidas, mas analisar como nossos sentimentos e motivações são afetados pelo pecado, por isso as duas histórias foram citadas.

A Escritura ensina que o homem foi criado para que Deus seja glorificado (Rm 11.36; 1Co 10.31) e nos instrui também de que o verdadeiro prazer, alegria, satisfação, esperança, segurança, etc. somente podem ser encontrados nele (Sl 73.25,26; Sl 1.2; Sl 16.11; Sl 18.2). Tanto é assim que no primeiro mandamento o Senhor ordena: “Não terás outros deuses diante de mim” (Êx 20.3), ou seja, nossa motivação deveria ser sempre a glória de Deus e o relacionamento com ele deveria satisfazer todos os nossos anseios.

Com a queda, o homem passou a buscar prazer em coisas e pessoas, aprovação dos homens e sua motivação se tornou egoísta. O problema é que sempre que dependemos de qualquer coisa ou pessoa para ser felizes, seguros ou plenamente realizados, estamos quebrando o primeiro mandamento e somos culpados pelo pecado da idolatria. Podemos voltar então aos exemplos citados no início para ver de forma prática o quanto o pecado aflige e distorce a vontade de Deus para a vida do homem.

No primeiro caso a alegria no céu está vinculada ao fato de ter os entes queridos também por lá, a ponto de achar que se lembrarmos de algum que não foi salvo (caso seja verdadeira a afirmação de que no céu teremos lembrança de tudo) ficaremos tristes, o que demonstra que a presença bendita do Senhor e a comunhão plena com ele ficariam ofuscadas de tal modo que não conseguiríamos estar alegres.

No segundo exemplo verificamos que a motivação para cumprir determinadas práticas não era glorificar ao Senhor, mas ganhar mais galardão e, por que não, o medo de ficar triste e invejar aqueles que ganharão mais.

É claro que não são somente as pessoas das histórias citadas que sofrem com os efeitos do pecado. Cada um de nós, membros da raça humana, caídos em Adão, padece os mesmos problemas.

Isso explica o porquê de muitas vezes pecarmos simplesmente para ser aceitos por homens, para ser bem vistos. Explica também o fato de muitas vezes sermos controlados pelo que as pessoas vão pensar, numa motivação totalmente egoísta. Você se lembra de Pedro afastando-se dos gentios com quem comia, pois temia o que “os da circuncisão” iam achar (Gl 2.11ss)?

Diante do que foi exposto devemos dar ouvidos à exortação do apóstolo João: “Filinhos, guardai-vos dos ídolos”, e verificar que ela vem logo após a afirmação de que estamos no verdadeiro Deus: Também sabemos que o Filho de Deus é vindo e nos tem dado entendimento para reconhecermos o verdadeiro; e estamos no verdadeiro, em seu Filho, Jesus Cristo. Este é o verdadeiro Deus e a vida eterna” (1Jo 5.20-21).

Que creiamos nisso de todo o coração e aprendamos a estar plenamente satisfeitos em Deus, motivados a fazer todas as coisas somente para a sua glória.

Milton C. J. Junior

segunda-feira, 2 de setembro de 2019

Estariam Herodes e Faraó também endemoninhados?

marionete A pergunta é puramente retórica. Aqueles que conhecem um pouco da história bíblica sabem que não. Ela foi feita, porém, como ponto de partida para pensar um pouco sobre uma afirmação que li em um blog por ocasião do massacre ocorrido em Realengo no ano de 2011, a de que Wellington Menezes de Oliveira, o cruel assassino das crianças, seria alguém insano e possuído por demônios.

A tragédia entristeceu o Brasil e não era para menos. O saldo de tamanha brutalidade foram 12 crianças mortas e mais de 22 feridos. A sociedade ficou chocada e muitos começam questionar as causas. Teria o assassino algum distúrbio mental? Estava ele possuído por demônios? O crime foi tão bárbaro que muitos se negaram a acreditar que alguém em sã consciência fosse capaz de uma monstruosidade como essa.

Como cristão, não posso deixar de pensar em toda essa questão à luz da Palavra de Deus. Faço, então, algumas considerações:

1. A queda afetou profundamente o homem

Ainda que o homem tenha sido criado santo, à imagem de Deus (Gn 1.26-28), com a desobediência de Adão (Gn 3) todos passaram, a partir de então, a ser inclinados para o mal. Tudo aquilo que o homem deseja, pensa e faz, está afetado pelo pecado. Paulo, citando vários textos do Antigo Testamento, pinta um retrato nada agradável do homem pós-queda. Diz o apóstolo:

como está escrito: Não há justo, nem um sequer, não há quem entenda, não há quem busque a Deus; todos se extraviaram, à uma se fizeram inúteis; não há quem faça o bem, não há nem um sequer. A garganta deles é sepulcro aberto; com a língua, urdem engano, veneno de víbora está nos seus lábios, a boca, eles a têm cheia de maldição e de amargura; são os seus pés velozes para derramar sangue, nos seus caminhos, há destruição e miséria; desconheceram o caminho da paz. Não há temor de Deus diante de seus olhos – Rm 3.10-18 (grifos meus).

A isso chamamos “depravação total”, resultado da queda de Adão. Nesse ponto você, leitor, pode estar dizendo: mas eu não me enquadro nessa descrição tão horrível”, e eu respondo: não seja tão apressado. Repare que o texto afirma peremptoriamente que “não há um sequer”, portanto, eu e você, inevitavelmente fazemos parte do grupo.

É claro que o conceito de depravação total diz respeito à extensão e não à profundidade, ou seja, a doutrina quer ensinar que o pecado afetou todas as faculdades do homem e não que o homem é tão mal quanto poderia ser. Apesar de todos serem potencialmente capazes das piores atrocidades, não são todos que as cometem e isso por pelo menos 3 razões: a) Mesmo com a queda, o homem é ainda imagem e semelhança de Deus, ainda que essa imagem esteja distorcida; b) O Senhor, soberanamente, refreia o pecado até mesmo dos ímpios; c) O Espírito Santo, por meio da Palavra, santifica aqueles que foram regenerados pelo Senhor.

Diante disso, afirmar, ou mesmo cogitar, que o assassino só poderia estar insano ou endemoninhado para cometer tal barbárie é subestimar o poder do pecado e a consequência do afastamento entre o homem e Deus. O homem não precisa da ajuda do diabo para manifestar sua maldade inerente. Ele é capaz por si só, e muitas vezes o faz quando tem oportunidade.

2. As ações são resultado dos desejos do coração

O homem é governado pelo seu coração. Esse ensino é abundante nas Escrituras, o que controla o coração controla o homem. Salomão, com a sabedoria que lhe era peculiar escreveu que “como na água o rosto corresponde ao rosto, assim, o coração do homem, ao homem” (Pv 27.19). Jesus enfatizou que “do coração procedem maus desígnios, homicídios, adultérios, prostituição, furtos, falsos testemunhos, blasfêmias” (Mt 15.19).

Há quem diga que o homem é aquilo que ele come, referindo-se à saúde do corpo. A verdade bíblica, porém, é que o homem é aquilo que ele crê (e isso engloba também a forma como se relaciona com os alimentos). As ações são resultado de convicções, e as convicções resultado daquilo que controla o coração.

Muitos tentam desculpar o homem apontando para as questões sociais ou culturais como causa do “comportamento inadequado”, porém, mesmo sabendo que essas questões podem influenciar, elas não são determinantes, antes, tais circunstâncias servem para revelar o que está latente no coração do indivíduo que acaba por agir em conformidade com ele.

Demonstrarei isso de forma prática com duas histórias que também envolvem o assassinato de crianças, ambas dos personagens citados no título, Herodes e Faraó.

A Bíblia relata que por ocasião do nascimento de Jesus alguns magos chegaram a Belém inquirindo sobre o nascimento do Rei dos judeus. Herodes ficou alarmado com a notícia e mandou que os magos o avisassem. Quando percebeu que os magos o haviam iludido, pois foram divinamente advertidos em sonho, enfureceu-se e mandou matar todas as crianças abaixo de dois anos (cf. Mt 2.1-18).

O que governava o coração de Herodes era o desejo de permanecer sendo rei. Sua convicção era a de que qualquer ameaça à sua condição de rei deveria ser eliminada, e foi isso que tentou fazer, mandando matar as crianças.

A segunda história é bem anterior a essa, aconteceu logo depois que José, filho de Jacó morreu. O livro de Êxodo afirma que logo após sua morte, levantou-se um novo rei no Egito que não conhecia a José. Ele começou a preocupar-se com o crescimento dos hebreus e temendo que o povo, em vindo a guerra, se ajuntasse aos seus inimigos e saíssem da terra, mandou colocar feitores sobre o povo para afligi-lo. Porém, quando mais afligido, mais o povo crescia. O rei arquitetou então outro plano, mandou que as parteiras matassem todos os meninos que nascessem das hebréias, o que não aconteceu somente porque as parteiras foram desobedientes (Ex 1.1-22).

O que governava o coração do rei era o desejo de continuar dominando os hebreus. Sua convicção era a de que nada poderia atrapalhar isso e sua ação foi para que seu intento prevalecesse.

As histórias confirmam ainda mais a tese de que o homem é governado pelo seu coração quando percebemos que os guardas, temendo Herodes, mataram as crianças, enquanto as parteiras, por temer ao Senhor, desobedeceram ao rei.

Em nossos dias não é diferente. Os homens bomba muçulmanos explodem-se em atentados terroristas convictos de que receberão como recompensa vinho e 72 virgens. Certamente o assassino do Rio tinha também suas motivações, ainda que não saibamos quais eram e talvez nunca venhamos saber. Uma coisa é certa, atribuir o assassinato a distúrbios mentais ou a endemoninhamento implica em retirar dele toda a responsabilidade moral pelo ato.

3. Devemos ter cuidado com o nosso coração

Quando nos deparamos com crimes bárbaros, semelhantes ao que ocorreu no Rio os sentimentos se misturam. Tristeza, revolta e ira, são apenas alguns deles, mas, diante do Senhor, devemos examinar nosso coração. Esse exame deve levar em consideração algo que vai além desta tragédia e deve ser abrangente o suficiente para abraçar outros acontecimentos ao redor do mundo, que são igualmente tristes e revoltantes.

Nosso coração é enganoso e pode pregar uma peça nada engraçada nos fazendo impactar com este evento e, contudo, expressar sentimentos que não tem direta relação com a glória de Deus e a compaixão com o próximo. Podem, antes, expressar um coração que, em seu egoísmo, pensa de si mesmo ser alguém que é melhor e procura desesperadamente alguém pior do que ele mesmo! O que estou tentando dizer é que a forma como lidamos com o pecado alheio pode revelar que, no fundo, achamos que somos capazes por nós mesmos de não fazer coisas semelhantes. Uma história que acho formidável e que revela um coração consciente da sua pecaminosidade e do cuidado de Deus envolve o pastor presbiteriano Matthew Henry. Conta-se que, ao voltar da universidade onde lecionava foi assaltado e fez a seguinte oração:

Quero agradecer, em primeiro lugar, porque eu nunca fui assaltado antes. Em segundo lugar, porque levaram a minha carteira, e deixaram a minha vida. Em terceiro lugar, porque mesmo que tenham levado tudo, não era muito. Finalmente,quero agradecer porque eu fui aquele que foi roubado e não aquele que roubou.

A percepção de Mattew Henry é perfeita. O que o diferenciava do ladrão era a maravilhosa graça de Deus que o havia regenerado e o conservava firme.

Devemos estar também muito bem conscientes disso. Aquele que é o único com poder para transformar um coração de pedra em um de carne (Ez 36.26) é o mesmo que nos ordena a guardar a Palavra nesse novo coração a fim de não pecar contra ele (Sl 119.1). É ele também que nos exorta a confiar nele, abandonando a autoconfiança, ao invés de presumirmos estar de pé por nossos próprios méritos, arriscando-nos a cair (1Co 10.11-13).

Para terminar...

Somente o Deus de toda a graça pode consolar e guardar o coração daqueles que estão ligados a vítimas em tragédias como esta. Precisamos rogar ao Senhor que guarde o nosso coração e  nos dê plena convicção de que, pecadores que somos, estamos sujeitos a atitudes também horríveis, a não ser que sejamos plenamente sustentados por sua graça e misericórdia.

Que agradeçamos ao Senhor porque se outrora éramos escravos do pecado, fazendo a vontade da carne e estando sob a justa ira de Deus, pela sua infinita graça, viemos a obedecer ao Evangelho e tivemos as disposições do coração corrupto modificadas, a fim de podermos servir de coração ao Redentor.

Que entendamos, sinceramente, que o que nos diferencia de homens que cometem esse tipo de atrocidade não é a nossa bondade em relação à maldade deles, mas a graça de Cristo Jesus que nos sustenta.

Que proclamemos que o Deus que nos redimiu é poderoso para salvar todos aqueles que, arrependidos, se achegam a ele pela fé. Lembre-se que o maior pregador cristão, Paulo, perseguia e matava os crentes, até que foi transformado pelo Senhor. Há redenção em Cristo Jesus!

Que busquemos, pela Escritura, conhecer mais o Redentor e que vivamos plenamente para sua glória e louvor.

Milton C. J. Junior

terça-feira, 27 de agosto de 2019

Depressão nos personagens bíblicos?

A Bíblia é (ou deveria ser) a regra de fé e prática dos cristãos. Teoricamente isso significa que as Escrituras, corretamente interpretadas, devem ser o crivo para o cristão interagir com todas as cosmovisões ao seu redor, avaliando-as e julgando-as a fim de reter o que é bom (1Ts 5.21). Teria de ser desta forma, pois o salmista afirma ser a Palavra a lâmpada para nossos pés e a luz para o nosso caminho (Sl 119) e o Senhor Jesus afirma ser ela “A verdade” (Jo 17.17).

Porém, para muitos crentes, na prática a teoria é outra. Inundados pelo modo de pensar deste século, crentes sinceros têm se descuidado e feito justamente o contrário, interpretado a Bíblia com pressupostos seculares.

Dia desses deparei-me com um texto assim. Nele, o autor se propõe a tratar de depressão e espiritualidade. Ele começa falando da depressão, principalmente da mulher, sob uma perspectiva médica, afirmando ser um conjunto de sintomas que merecem atenção profissional, médica e psicológica. Segundo o texto:

A depressão feminina está ligada a causas biológicas (puberdade, ciclo menstrual, gravidez ou infertilidade, pós-parto e menopausa), causas culturais (papel da mulher, status social, abuso sexual) e causas psicológicas (estresse, reação às perdas e aos conflitos, discriminação).[1]

O autor explica ainda que a depressão é classificada tradicionalmente em endógena e exógena, sendo a primeira originada por causas internas (biológicas ou predisposições hereditárias) e a segunda causada por fatores externos, como se fosse uma reação a fatores ambientais e circunstanciais (desemprego, divórcio, etc.).

O tratamento, segundo ele, deve seguir dois procedimentos, a avaliação e diagnóstico por um profissional médico e a escolha do tratamento adequado, sendo tratamentos eficazes o medicamentoso e a psicoterapia.

Assumidos os pressupostos, parte-se então em uma busca para provar a depressão biblicamente e, de acordo com os sintomas da depressão descritos no texto, chega-se à conclusão de que Jó, Moisés, Jonas, Davi e, surpreendentemente, o próprio Senhor Jesus passaram por depressão. A evidência seria eles terem pedido para morrer ou, no caso de Davi, ter os ossos e o humor afetados pela depressão. Para o articulista esses exemplos provam o realismo bíblico da depressão demonstrando que a fé não livra o homem de problemas mentais, mas também trazem esperança. Citando Hebreus 2.18 e 4.15 ele afirma que Jesus pode compadecer-se de quem enfrenta depressão por ter ele mesmo sofrido com isso.

Por fim o autor afirma que muitos substituem o tratamento médico pelo religioso por causa de preconceito, por falta de informação ou em nome de uma grande fé e lembra ser a medicina uma bênção do Senhor e os remédios, meios divinos para nossa cura, pois Deus cura extraordinariamente por meio de um milagre, mas ordinariamente cura pessoas por meio de um tratamento médico.

Verificando as implicações

Se assumirmos como corretas as interpretações dos textos bíblicos e as afirmações feitas pelo autor, temos sérias implicações:

1. Certos tipos de emoções e comportamentos (desânimo, tristeza “desproporcional às circunstâncias, aumento ou diminuição do apetite, pensamentos, planos ou tentativa de suicídio, etc.”), devem ser encarados como patológicos;

2. Tivessem os personagens bíblicos citados, incluindo o nosso Senhor, a bênção de viver num tempo em que já existe o Rivotril, a sua “doença” poderia ter sido curada por Deus de modo “ordinário”. Falar da profunda tristeza de Jesus como se fosse desejo de morrer é dizer o que o texto não diz, como ficará claro mais à frente;

3. Conselheiros bíblicos não estão aptos a aconselhar pessoas com depressão, devendo esse trabalho ser feito sempre por profissionais psicoterapeutas;

4. A “conversa psicoterapêutica” é mais eficaz que a “conversa bíblica”;

5. O aconselhamento bíblico, para o caso da depressão, está descartado pelo autor, já que os tratamentos efetivos são o medicamentoso e a psicoterapia;

6. Discordar da perspectiva do articulista sobre a depressão é ser mal informado, preconceituoso e, praticamente, um adepto da confissão positiva.

Para provar ser a depressão uma doença que deve ser tratada de forma medicamentosa, o autor recorre a exemplos bíblicos que “demonstram” a sua realidade. A ironia está no fato de que nenhum dos “depressivos bíblicos” foi tratado com remédio, por razões óbvias.

Testando biblicamente – textos nos seus contextos

Como afirmado no início deste artigo, a Bíblia corretamente interpretada é o parâmetro para julgar todas as outras coisas, e não o contrário. Não há dúvidas de que estes nossos irmãos do passado enfrentaram tristezas profundas, mas terá o autor acertado em seu “diagnóstico” a respeito destes personagens, usando as lentes que ele usou? É preciso, então, verificar os textos em seus devidos contextos a fim de afirmar o que estava acontecendo com cada personagem diagnosticado com depressão.

Antes, porém, de nos atermos aos textos, é preciso estabelecer novos pressupostos:

1. A Bíblia ensina que somos governados por nosso coração e o que governa o nosso coração governará a nossa vida (Mt 6.21; Mt 15.19; Sl 141.4);

2. A forma como respondemos às pessoas e circunstâncias dependerá, portanto, daquilo que está governando o nosso coração. Como exemplo, lembremos a negação de Pedro. A despeito de saber o que era o certo a se fazer, acabou por negar o Senhor com medo de morrer;

3. Nossas ações e emoções são fruto da nossa interpretação da realidade. Ainda pensando em Pedro, ele interpretou que os homens eram maiores que o Senhor e que não estaria seguro falando a verdade, ainda que já tivesse ouvido do próprio Jesus que até os cabelos de sua cabeça estavam contados e que, por isso, não precisaria temer os que matam o corpo (Mt 10.16-33).

Assumidos os novos pressupostos, vejamos os textos:

A “depressão” de Jó

Jó é descrito no começo do seu livro como um homem íntegro, reto e que se desviava do mal. O Senhor chega a afirmar a Satanás que não havia na terra homem semelhante a ele (Jó 1.8). Depois que Satanás acusa Jó de servir a Deus somente por ser alvo de suas bênçãos, é permitido que o tentador tire tudo dele. A partir daí a história se desenvolve de forma maravilhosa.

No princípio, Jó faz uma afirmação de fé formidável. Após sua esposa mandá-lo amaldiçoar a Deus e morrer ele diz: “Temos recebido o bem de Deus e não receberíamos também o mal?” (2.10).

Porém, a partir do capítulo 3 Jó parece interpretar os fatos de outra forma. Sendo ele justo, não poderia estar sofrendo daquela forma, antes tivesse morrido na madre. Isso pode ser confirmado em todo o capítulo 31, no qual Jó fala de suas qualidades ao responder aos seus amigos chegando, por fim, a dizer: “Tomara eu tivesse quem me ouvisse! Eis aqui minha defesa assinada! Que o Todo-Poderoso me responda.” No primeiro versículo do capítulo 32 temos: “Cessaram aqueles três homens de responder a Jó no tocante ao se ter ele por justo aos seus próprios olhos.”

A partir do capítulo 38 Deus, em vez de responder a Jó, lhe faz uma série de perguntas que revelavam seu poder e sua soberania. Ao final, diz o Senhor: “Acaso, quem usa de censuras contenderá com o Todo-Poderoso? Quem assim argui a Deus que responda” (40.2).

O resultado é maravilhoso. Jó afirma: “Sou indigno; que te responderia eu? Ponho a mão na minha boca. Uma vez falei e não replicarei, aliás, duas vezes, porém não prosseguirei.” Jó reconhece que a realidade era diferente daquela que ele interpretava, mas Deus continua com mais uma série de perguntas que apontavam para a sua sabedoria. Ao final Jó confessa que nenhum dos planos de Deus pode ser frustrado e afirma que o conhecia apenas de ouvir, mas que agora que o via se abominava e se arrependia (42.1-6).

A “depressão” de Jó foi causada por uma falsa interpretação da realidade e o tratamento de Deus foi fazê-lo ver com clareza que as coisas não eram como ele entendia. O Senhor confrontou Jó, com sua Palavra, e restaurou-o.

A “depressão” de Moisés

O caso de Moisés é interessante. Desde o começo de seu chamado ele se mostra bastante relutante e, vez por outra, esquecia a promessa feita por Deus ao comissioná-lo: “Eu serei contigo” (Êx 3.12). No episódio em que pediu ao Senhor que o matasse, estava mais uma vez murmurando, pois o povo continuamente reclamava por não ter carne (Nm 11.4). Ele estava achando ser muito pesado o seu encargo e que faria as coisas por sua própria força (Nm 11.14).

A primeira coisa que o Senhor faz é distribuir o trabalho com 70 anciãos e, com menos trabalho, a murmuração de Moisés terminaria, certo? Errado! Deus afirmou que alimentaria o povo e daria tanta carne em um mês inteiro a ponto de sair pelo nariz e o povo se enfastiar dela. Moisés entendeu que novamente seria muito trabalho para ele e reclamou, insinuando ser impossível para ele prover carne para o povo o mês inteiro (Nm 11.22).

Deus trata Moisés confrontando-o: “Ter-se-ia encurtado a mão do Senhor?” (Nm 11.23). Em outras palavras, Deus estava dizendo a Moisés que não precisaria reclamar e se preocupar, pois ele era o provedor.

Mais uma vez o desejo de morrer foi por não confiar no Senhor e o tratamento foi o confronto com as promessas de Deus e a interpretação da realidade pela perspectiva correta.

A “depressão” de Jonas

Jonas é visto no texto como um doente que sofria de grave melancolia ou distimia crônica. Uma leitura rápida do livro já revela a razão de ele pedir a morte. Jonas é chamado por Deus para pregar aos ninivitas, povo poderoso, inimigo de Israel. A primeira coisa que o profeta faz é fugir, ele não queria ver os ninivitas convertidos. Depois do episódio em que é lançado no mar e engolido por um peixe, Jonas acaba parando em Nínive onde prega o sermão mais duro que se poderia pregar e, para sua surpresa, o povo crê em Deus.

O capítulo 4 começa afirmando que, por causa disso, Jonas desgostou-se e irou-se. O texto é claro, o profeta diz que fugiu porque sabia que Deus era misericordioso e, agora, com os ninivitas convertidos, era melhor morrer que viver. Jonas revela um coração egoísta, que não confia nos propósitos de Deus. Ele queria fazer melhor que o Senhor, mas já que isso não foi possível melhor seria a morte.

Deus trata o profeta confrontando o seu egoísmo e demonstrando que da mesma forma que tinha compaixão de uma árvore o Senhor também tinha dos ninivitas. O Senhor estava mostrando a Jonas que a maneira de ele interpretar as circunstâncias estava equivocada.

A “depressão” de Davi

A depressão de Davi é “constatada” não pelo fato de ele ter pedido a morte, mas dos seus ossos e humor terem sofrido seus efeitos. A questão é que esse sofrimento, visto como consequência da doença, era o tratamento de Deus ao rei, que não estava arrependido. Considerando estar Davi doente, a contextualização do Salmo deveria ser: “Enquanto não tomei rivotril, envelheceram os meus ossos pelos meus constantes gemidos noite e dia.”

Porém, como pode ser visto em Hebreus, a disciplina de Deus sobre os seus filhos no momento não parece ser motivo de alegria, mas de tristeza, mas ao final produz fruto de justiça (Hb 12.11). A tristeza causada pelo peso da mão de Deus constitui-se uma bênção e é parte do processo de reconhecimento do pecado por parte do crente.

Cada um dos casos citados acima, devidamente observados dentro de seus contextos, revela crentes sofrendo profundamente por não interpretar as circunstâncias pela perspectiva das promessas da Palavra de Deus, por não descansar no governo de Deus ou por ocultar o pecado.

Se fossem medicados poderiam até, por um tempo, ter o seu sofrimento aliviado, mas não teriam o pecado do seu coração tratado, o que só pode ser feito pela Palavra de Deus que “é viva e eficaz, e mais cortante do que qualquer espada de dois gumes, e penetra até ao ponto de dividir alma e espírito, juntas e medulas, e é apta para discernir os pensamentos e propósitos do coração (Hb 4.12).

A “depressão” de Jesus

O caso de Jesus foi deixado para ser tratado à parte, pois sua tristeza não foi ocasionada pelas mesmas razões dos outros personagens.

O autor do texto faz duas afirmações e a implicação óbvia é a de que Jesus precisava mesmo era de um tarja preta. São elas: a) Jesus passou por uma depressão profunda e b) ele desejou morrer.

Essas afirmações resistem a um exame do texto? Creio que não, como veremos.

Depois de três anos ensinando os discípulos, curando e anunciando o reino, se aproximava a hora em que o Senhor derramaria o seu sangue para redimir o pecador. Ele chama seus discípulos e sobe o Getsêmani a fim de orar e chamando à parte Pedro, Tiago e João afirma estar profundamente triste, até a morte. Essa frase expressa a profunda tristeza de Jesus, mas será que revela que ele desejou morrer? Olhando para o versículo seguinte fica bem claro que não. Nele Jesus ora rogando ao Pai que, se possível, passasse dele o cálice, ou seja, ele pede exatamente o contrário, pede para não ir para cruz.

O que angustiava Jesus era justamente a morte, pois ela significaria receber a ira de Deus pelos pecados do seu povo, que ele estaria assumindo no Calvário. Por causa dos nossos pecados o Senhor morreria e sentiria o desamparo do Pai, a ponto de clamar: “Deus meu, Deus meu, por que me desamparaste?” (Mt 27.46).

A afirmação de que Jesus estava triste e pedindo a morte por estar com depressão é, então, uma falácia. Nem todo o Prozac do mundo aliviaria sua tristeza por ter a comunhão perfeita com o Pai quebrada por causa dos nossos pecados.

Quando o autor afirma, portanto, que Jesus pode compadecer-se de nós por ter sido tentado da mesma forma, ele faz uma afirmação correta, mas parte de uma premissa equivocada. Jesus não pode compadecer-se de doentes por ter experimentado a doença da depressão, mas compadecer-se de homens que são tentados a não confiar no plano de Deus, por ter ele mesmo sido tentado a abandonar o Calvário, mas, em vez disso, ter se submetido à vontade do Pai ao declarar: “Todavia, não seja como eu quero, e sim como tu queres” (Mt 26.39). É por isso que o escritor de Hebreus afirma que “foi ele tentado em todas as coisas, à nossa semelhança, mas sem pecado (4.15).

Para terminar...

É um grande equívoco assumir como pressupostos teorias científicas e interpretar os episódios de profunda tristeza de personagens bíblicos com lentes seculares. Essa será uma tarefa sempre impossível, pois para a medicina a depressão é caracterizada por um conjunto de sintomas e não pela presença de um ou dois apenas.

Ed Welch, conselheiro bíblico, questiona se o cérebro não tem recebido muito crédito e exemplifica dizendo que

Temos um crescente senso de que o cérebro é a causa real do comportamento. Aquilo que começou como uma sugestão, ou seja, que a química cerebral é a causa final do abuso de álcool, se expandiu até o ponto onde a química cerebral é considerada a causa final de literalmente cada problema humano. [...] – E faz o alerta –

Como cristãos, no entanto, não somos tão ingênuos. Sabemos que não podemos aceitar cegamente tudo que ouvimos como sendo verdade de Deus. A informação que recebemos sobre funcionamento cerebral é vista do mesmo modo que vemos qualquer informação, seja ela sobre finanças, paternidade, ou as causas de nosso comportamento: vemos tais informações através das lentes da Escritura. E esta requer de nós que estejamos atentos, cuidadosos e em oração ao ouvirmos e avaliarmos as últimas descobertas científicas”[2].

Não é objetivo deste texto minimizar o sofrimento humano, de forma alguma. Ele é real e deve ser sempre tratado. A questão aqui gira em torno do “como” tratar. No artigo “Uma crítica do DSM-IV à luz da Bíblia”[3], John Babler afirma acertadamente:

As Escrituras são o caminho apropriado para o entendimento dos assim chamados transtornos mentais: eles consistem em comportamentos derivados do pecado. Uma mudança verdadeira pode acontecer a partir do momento em que o pecado é admitido e há arrependimento. Quando o problema consiste em um coração perdido, a Palavra de Deus é o remédio mais seguro porque o Espírito Santo nos conduz a Cristo.[4]

Alguns podem afirmar que o que foi tratado aqui serve para a chamada depressão exógena, mas não se aplicaria à endógena por esta ter causas biológicas e hereditárias. É importante, então, fornecer algumas informações.

A revista Superinteressante de dezembro de 2010 noticiou uma pesquisa que aponta para o fato de que os antidepressivos causam depressão. Isso porque, contrário ao que se pensava, a depressão não é causada pela falta de serotonina no cérebro, mas pelo excesso desse neurotransmissor. Como o antidepressivo aumenta os níveis de serotonina, acaba tendo o efeito contrário ao desejado.[5]

Em palestra ministrada neste mês aqui no Brasil, o médico americano Charles Hodges, citando um artigo de 2005, de autoria de Lacasse JR, intitulado “Serotonina e depressão, a desconexão entre a propaganda e a literatura científica”, afirmou que

“os autores declaram que a pesquisa da neurociência contemporânea falhou em confirmar qualquer lesão cerotonérgica em qualquer distúrbio mental e na verdade proporcionou evidências contrárias à explicação da simples deficiência dos neurotransmissores. Em nosso conhecimento, não há nenhum artigo revisado que possa ser citado para sustentar a ideia da deficiência de serotonina em nenhum distúrbio mental”[6].

Essa perspectiva não é nova. Thomaz Szasz, psiquiatra e acadêmico, foi um ferrenho opositor da ideia da depressão como doença. Quando questionado em uma entrevista sobre a eficácia dos medicamentos ele respondeu:

Não vejo dificuldade em explicar isso. O comportamento humano, seja normal ou anormal, não acontece no vácuo, obviamente ele é mediado pelo modo como o corpo e cérebro da pessoa funciona, e o fato de substâncias químicas afetarem o cérebro em instituições mentais não é mais misterioso do que cerveja, álcool ou outros tipos de bebida afetarem pessoas normais. Elas vão pra casa após um dia de trabalho, se sentem cansadas e deprimidas e tomam alguma bebida e se sentem melhor. Isto não quer dizer que elas estavam doentes antes. Podemos tomar vários tipos de substâncias químicas que afetam nosso comportamento. Isso de maneira alguma prova que o estado anterior era um estado de doença médica.[7]

Outro psiquiatra afirma que, desde que os antidepressivos foram lançados no Reino Unido, pelo menos uma pessoa por semana cometeu suicídio enquanto os tomava, e não teriam cometido se não os tivessem tomado.[8]

Theodore Dalrymple, psiquiatra ateu, assim diz em seu livro:

O conceito de desequilíbrio na química do cérebro como a origem dos pensamentos, desejos, humor e comportamento, principalmente quando é mau comportamento, foi aceito pelos estudiosos do fim do século XX com a credulidade só excedida pelos camponeses medievais diante das relíquias religiosas, mas com resultados estéticos – e possivelmente psicológicos – menos benéficos.

[...]

A popularidade da química do cérebro como explicação para todo o comportamento humano – pelo menos o comportamento que, em virtude das dificuldades que causa, aparentemente precisa de explicação – começou na década de 1980 com o marketing muitíssimo bem-sucedido das novas drogas, supostamente antidepressivas, conhecidas como inibidores seletivos de recaptação de serotonina (ISRSs ou SSRIs na sigla em inglês) – tão bem-sucedido que a qualquer momento eles podem estar sendo tomados por um décimo da população adulta.

[...]

Foram necessários dois avanços para que a teoria do ‘desequilíbrio químico’ das dificuldades da existência se tornasse tão difundida a ponto de parecer evidente para metade da população (a metade mais instruída): primeiro, o afrouxamento do diagnóstico de depressão para abranger todas as formas de infelicidade humana; segundo, o desenvolvimento de novos antidepressivos, os famosos – ou infames – ISRSs (inibidores seletivos de recaptação de serotonina).

A primeira dessas condições foi tão minunciosamente cumprida que a palavra infeliz foi eliminada da linguagem comum. Para cada pessoa que você ouve falando em público de infelicidade, você ouve no mínimo dez falando de depressão. Poucos são os que agora admitem ser infelizes e não deprimidos, outra ‘evasão admirável’, pois já que a depressão é doença – causada, evidentemente, por desequilíbrio químico –, é natural que quem sofre dela procure tratamento médico quando experimenta qualquer desvio de felicidade, que é o estado natural da humanidade, bem como um direito inalienável (a descoberta substituiu a busca como um direito inalienável). Se alguém admite ser infeliz, pode ter disso sua má conduta, tola ou imoral, que contribuiu para isso; mas se é deprimido ele é vítima de uma doença que, metafisicamente falando, caiu do céu.

[...]

Os psiquiatras têm uma lista de sintomas; e se os pacientes alegam sofrer de um número suficiente (não é preciso ser muitos), recebem os comprimidos. Alguns dos sintomas têm conteúdo irredutivelmente moral, como a autoestima, cuja perda é invariavelmente patológica aos olhos dos psiquiatras; ou um sentimento de culpa, cujo aumento é invariavelmente patológico aos olhos dos psiquiatras e independente de qualquer justificativa.

[...]

Ouvindo o Prozac, caso você não se lembre, foi um best-seller publicado em 1993 pelo psiquiatra Peter D. Kramer. O Prozac foi o primeiro dos ISRSs a ser vendido, e suas alegadas vantagens eram muitas.

[...]

O livro de Kramer sugeriu muito mais que isso. Ele alegava que na verdade o Prozac poderia consertar uma personalidade com defeito, ou que a pessoa considerasse imperfeita. Segundo o autor, nosso conhecimento e comando dos neurotransmissores seriam tão grandes que estaríamos entrando numa era de neurofarmacologia estética, em que desenharíamos nossa própria personalidade: um pouco mais de autoconfiança aqui, um pouco menos de irascibilidade acolá. Poderíamos ser exatamente quem gostaríamos de ser, não pelos meios tradicionais de disciplina e autocontrole, e sim pela mistura judiciosa de comprimidos. Isso, é claro, é exatamente o que o homem devasso quer ouvir. A única coisa que mudou desde que ele culpou o Sol, a Lua e as estrelas pelos seus desastres é que agora ele culpa a noradrenalina, a serotonina e o ácido gama-aminobutírico.

Essa ideia reducionista de que tudo se resume ao neurotransmissor, de que o excesso ou escassez de um punhado de substâncias biológicas no cérebro supostamente é responsável por todos os nossos desastres, jamais deveria ter sido levada a sério[9] (grifos meus).

Ainda mais um autor escreveu em sua obra que

A história do desequilíbrio químico, que está sendo contada sobre todos os medicamentos psicotrópicos, até mesmo para benzodiazepínicos (comprimidos para os ‘nervos’ ou para dormir), é uma grande mentira. Nunca foi documentado que qualquer uma das grandes doenças psiquiátricas seja causada por um defeito bioquímico e não há qualquer teste biológico que consiga nos dizer se alguém tem determinado transtorno mental. Como um exemplo, a ideia de que os pacientes deprimidos têm carência de serotonina foi convincentemente rejeitada[10].

Todas essas citações tem como objetivo, como se pode perceber, demonstrar que não há toda essa unanimidade em relação às causas biológicas da depressão, tampouco sobre os efeitos dos antidepressivos. A desconfiança não parte apenas de “religiosos em nome de uma grande fé”, mas também de médicos e pesquisadores.

Enquanto a ciência não chega a uma conclusão, temos a infalível Palavra de Deus. Somente a Lei do Senhor é perfeita e restaura alma (Sl 19.7) e, como afirma o apóstolo Pedro, pelo conhecimento de Cristo temos todas as coisas que são suficientes para a vida e piedade. Crer nisso não é preconceito ou falta de informação, mas convicção de que Cristo Jesus é plenamente suficiente na vida dos crentes.

Post scriptum: Uma palavra sobre medicamentos

O texto não é um tratado conta os medicamentos. Particularmente não conheço nenhum conselheiro bíblico que entenda que tomar medicação para depressão seja pecado. Como afirma Heath Lambert em seu livro “O evangelho e as doenças da mente”, “os conselheiros podem ter sua própria opinião a respeito disso. Tais opiniões podem ser bem informadas, e baseadas em excelentes pesquisas científicas. Entretanto, no fim das contas, elas não passam de opiniões. O conselheiro que não possui uma formação médica não está aparelhado, seja pela lei ou pelo treinamento profissional, para agir de acordo com o que acredita”.

Robert Kellemen (que tem um excelente livro lançado pela Editora Cultura Cristã: Aconselhamento segundo o evangelho), por exemplo, afirma que nenhum dos principais grupos de aconselhamento dos EUA são “opositores à medicação”. O que conselheiros devem fazer é encorajar as pessoas estarem bem informadas a respeito dos medicamentos, dos seus prós e contras. Leia o texto aqui: “I’m thinking about going to the Doctor for depression meds” – What is a compassionate, comprehensive response?

O médico Charles Hodges, conselheiro bíblico, defende que o uso de medicação é algo que diz respeito à liberdade cristã. Confira aqui: Quando a medicação psicoativa é útil na vida de um aconselhado

Conselheiros bíblicos responsáveis não pedem ou sugerem aos seus aconselhados que parem de tomar medicação, caso estejam fazendo uso. O que muitos fazem é dizer aos aconselhados para conversarem com seus médicos a fim de saberem da possibilidade de receber alta ou ir retirando aos poucos. A decisão a respeito desse assunto é do médico.

Miton C. J. Junior


[1] https://www.ippinheiros.org.br/blog/a-depressao-entre-as-mulheres/

[2] Edward T. Welch. A culpa é do cérebro? – Ed. Peregrino

[3] DSM é o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, livro de referência decisivo para os diagnósticos psiquiátricos, e que está em sua quarta edição

[4] John Babler. Uma crítica ao DSM-IV à luz da Bíblia. in: Coletâneas de Aconselhamento Bíblico, v. 2, CCEF e SBPV

[5] http://super.abril.com.br/saude/anti-depressivo-pode-causar-depressao-614371.shtml

[6] https://youtu.be/TA3qRmuW8aY

[7] http://scienceblogs.com.br/psicologico/2009/04/thomas_szasz_entrevistado_sobr.php

[8] http://www.youtube.com/watch?v=j63-8Ac3dh0

[9] Theodore Dalrymple. Evasivas admiráveis: Como a psicologia subverte a moralidade. Ed. É realizações

[10] Peter C. Gøtzsche. Medicamentos mortais e o crime organizado.