sábado, 31 de março de 2018

Quando o aconselhamento bíblico não é possível

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Se você tem acompanhado este blog pode estar se perguntando a que o título se refere. Afinal de contas, tenho publicado aqui textos que afirmam e reafirmam a suficiência das Escrituras para tratar quaisquer problemas do homem que não tenham origem orgânica, os chamados males da alma. Tenho defendido a superioridade do aconselhamento bíblico sobre qualquer outro sistema de aconselhamento pautado na sabedoria deste mundo. Concordando com Jay Adams, creio que “sendo o aconselhamento – o processo de auxiliar outros a amarem a Deus e ao próximo – uma parte do ministério da Palavra (assim como a pregação) é inconcebível usar qualquer outro texto (do mesmo modo que seria impensável usar outros textos na pregação) que não seja a Palavra de Deus. O ministro da Palavra deixa de o ser, quando se fundamenta em outro texto que não seja a Palavra”[1].

Portanto, o presente artigo não quer contradizer isso. Sim, ceio que em Cristo, conforme revelado nas Escrituras, temos “todas as coisas que conduzem à vida e à piedade” (2Pe 1.3). Todavia, é preciso reconhecer que há uma circunstância em que o aconselhamento bíblico é impossível. Não pense que estou endossando aqui a posição de que há problemas muito grandes para pastores ou conselheiros bíblicos e que necessitam de um profissional terapeuta “qualificado”. A impossibilidade se torna evidente não por causa dos tipos de problemas, mas por causa da incapacidade daqueles que estão enfrentando os problemas de ouvir instruções bíblicas.

Sendo mais claro, Paulo afirma que “certamente, a palavra da cruz é loucura para os que se perdem” (1Co 1.18) e que “o homem natural não aceita as coisas do Espírito de Deus, porque lhe são loucura; e não pode entende-las, porque elas se discernem espiritualmente” (1Co 2.14). Ou seja, alguém que ainda não foi regenerado não pode, de forma alguma, atender à Palavra de Deus!

Só para usar figuras bíblicas, a Palavra de Deus é descrita como uma espada de dois gumes que penetra a ponto de discernir os propósitos do coração (Hb 4.12). Entretanto, o coração do pecador é de pedra, e para que possa ser penetrado pela Palavra, deve ser, antes, transformado em um coração de carne (Ez 11.19). Essa promessa, feita por Deus no Antigo Testamento, é essencial para que os homens “andem nos meus [de Deus] estatutos, e guardem os meus juízos, e os executem; eles serão o meu povo, e eu serei o seu Deus” (Ez 11.20).

A falta de um novo coração, isto é, da regeneração, torna impossível o aconselhamento bíblico, pois o pecador, sem Cristo, não tem condições de colocar em prática, com a motivação correta, as ordens e orientações da Palavra de Deus. Não adianta dar princípios bíblicos a alguém que não é nascido de novo.

Certa vez, conversando sobre isso, fui questionado por meu interlocutor se não seria bom ter não crentes recebendo orientações da Palavra de Deus, mesmo que não chegassem a crer em Cristo, afinal de contas, sendo a lei de Deus perfeita, sua prática acabaria por melhorar um pouco a vida dos ímpios. Talvez esse possa ser também o seu questionamento diante do que leu até aqui, e é preciso uma resposta.

Não tenho dúvidas de que a lei é boa e, mais que isso, Paulo diz, ainda, que o mandamento é também santo e justo (Rm 7.12). No salmo 19 Davi qualifica a lei como perfeita, fiel, reta, pura, límpida, verdadeira e o que ela produz é restauração da alma, concessão de sabedoria aos símplices, alegria ao coração, iluminação dos olhos. Entretanto, isso se dá somente após a conversão. Em Cristo, e somente por estar em Cristo, o homem tem condições de guardar a lei. A resposta à pergunta 97 do Breve Catecismo de Westminster explica que a utilidade especial da lei moral aos regenerados é lhes “mostrar quanto devem a Cristo por tê-la cumprido e sofrido a maldição dela, em lugar e para o bem deles; e assim leva-los a uma gratidão maior, e a manifestar essa gratidão por maior cuidado da sua parte em conformarem-se a esta lei, como regra de sua obediência” (BCW – p. 97).

A lei leva o crente à gratidão por Jesus Cristo ter cumprido algo que homem algum poderia cumprir de forma plena. Isso porque a obediência à lei não se dá apenas externamente, mas leva em conta a razão da obediência. Uma coisa é alguém não roubar por amor e satisfação em Deus e amor ao próximo, outra coisa é alguém não roubar com medo de ser preso. No primeiro caso, a razão é a glória de Deus, no segundo, a preocupação egoísta consigo mesmo. Mas o resultado final é o mesmo: alguém que não rouba. Isso não é suficiente diante de Deus, por isso não deve ser o alvo do aconselhamento bíblico.

Tentar dar preceitos bíblicos a não crentes é uma simples tentativa de resolver os sintomas de um problema maior, a inimizade do homem com Deus. Imagine um casal não crente recebendo instruções bíblicas, sem levar em conta a redenção: O conselheiro ensina ao homem que ele deve estar disposto a morrer por sua esposa para o seu casamento ir bem. Ensina também à esposa que ela deve submeter-se ao marido, com o mesmo objetivo, a manutenção do casamento. Talvez isso funcione por um tempo, pois, ao tratar bem a esposa, ela pode também querer agradá-lo, submetendo-se a ele. Mas sem a capacidade de fazer o que é certo para a glória de Deus (eles não têm um novo coração), isso durará pouco tempo, e ainda que dure muito tempo, só servirá para mandar um casal “unido” para o inferno.

Pense na função da lei de Deus para o não crente. Novamente recorro ao Breve Catecismo, que afirma que a utilidade especial da lei moral para os não regenerados é “despertar a consciência deles para que fujam da ira vindoura e para força-los a recorrer a Cristo; ou para deixá-los inescusáveis e sob a maldição do pecado, se continuarem nesse estado e caminho” (BCW – p. 96).

O conselheiro não pode se ocupar simplesmente em resolver problemas, pois cairá na tentação de dar a não crentes simples instruções de como viver bem e, caso funcione, estará afastando-os ainda mais de Jesus Cristo. Talvez aqui seja necessário lembrar que Jesus proferiu um de seus “ais” aos fariseus porque eles se esforçavam para fazer um novo converso, e uma vez feito isso, o tornavam filho do inferno duas vezes mais que eles (Mt 23.15). Lembre-se de que o ensino deles era a de salvação pela guarda da lei (distorcida, eu sei), sem um Redentor.

O princípio é o mesmo. Da mesma forma que o prosélito (novo convertido), convencido de que poderia ser justificado diante de Deus pela lei, desprezava a Cristo, o não crente que aprende apenas princípios para melhorar seu problema sem se dar conta de sua falta de capacidade, entenderá que não precisa de um Redentor.

Conselheiro, você não pode se contentar com uma meta tão baixa como essa. Isso qualquer terapeuta tem como alvo, segundo a sabedoria deste século. Você precisa querer mais!

Como proceder, então?

Agora, talvez, você esteja exatamente com essa pergunta em mente. É preciso, então, caminhar um pouco mais. Como bem afirmou Welch, “todos os aspectos da vida são vividos diante da face de Deus” – e levando em conta isso – “o aconselhamento bíblico procura lidar com esta característica central da nossa vida, sendo completo somente quando considera nosso relacionamento com Deus e nos dirige a ele”[2].

O aconselhamento bíblico, mais do que resolver problemas, tem por fim levar o aconselhado à maturidade e à conformação com Cristo Jesus, a fim de que ele aprenda a responder às suas circunstâncias, de forma piedosa, com a ajuda do Redentor.

Quando aconselhamos um cristão comprometido com Cristo, partimos do princípio de que ele sabe que deve viver para a glória de Deus e, ainda que ele tenha que ser relembrado desta verdade, ele tem todas as condições de “desenvolver a sua salvação”, pois Deus opera nele o querer e o realizar, conforme sua boa vontade (Fl 2.12,13).

Entretanto, diante de um não crente, o conselheiro tem de estar certo de que este aconselhado não tem condições de viver para glória de Deus, nem de responder piedosamente às suas circunstâncias. Deve manter em mente que o privilégio concedido pelo Senhor neste instante é mais do que tentar “curar superficialmente as feridas”, mas de talvez ser instrumento de Deus para uma mudança verdadeira que começa com a rendição a Jesus Cristo.

Alguns entendem que neste momento o conselheiro deveria parar o aconselhamento e apresentar o “plano de salvação”, para depois concentrar-se nos problemas. Creio, entretanto, que as duas coisas podem ser feitas concomitantemente.

Não crentes que procuram aconselhamento bíblico estão vivendo dilemas reais, dores reais e muitos estão esgotados com suas lutas. Não é sábio desconsiderar todas essas coisas e não é misericordioso não demonstrar compaixão.

Certa vez Jesus aproximou-se de uma mulher, perto de uma fonte, e começou uma conversa com a samaritana pedindo a ela “água”, culminando na afirmação da necessidade que aquela mulher tinha da “água viva” e que pediria essa água se entendesse quem era aquele que estava conversando com ela (Jo 4.1-10). Isso despertou a curiosidade da mulher que perguntou se ele era maior que Jacó, que havia dado a eles poço. Jesus afirmou, então, que quem bebia do poço de Jacó voltava a ter sede ao passo que bebendo de sua água, a sede cessaria para sempre. Isso fez com que a mulher pedisse, então, dessa água.

A história mostra que Jesus estava tratando da maior das necessidades da mulher, mas ele não ignorou seus dilemas pessoais, o que é visto quando ele pede para ele chamar o homem que ele sabia não ser o marido dela, que já havia tido cinco. A conversa segue com a mulher perguntando sobre adoração e ouvindo que o Pai procura adoradores que o adorem em Espírito e em verdade. É nesse ponto da história que ele se revela como o Messias que ela disse saber que estava para vir. Mais uma vez quero enfatizar. Jesus tratou o problema mais profundo daquela mulher, a falta de redenção, mas sem desconsiderar seu problema “superficial”.

Conselheiros devem rogar ao Senhor sabedoria a fim de abordar os problemas dos não crentes usando-os para mostrar a eles a necessidade de alguém que lute suas lutas e caminhe com eles, capacitando-os a responder de forma piedosa às circunstâncias que podem ou não melhorar. Esse caminho envolve arrependimento e fé no Salvador, Jesus Cristo.

Não se esqueça. Quando lidamos com não crentes, juntamente com a instrução do que fazer é necessário mostrar a eles a impossibilidade de fazerem sozinhos, anunciando-lhes que existe um Redentor que resolve o maior de todos os seus problemas, a fim de eles possam lidar com suas circunstâncias de uma forma que honre o Deus que liberta o pecador da miséria do pecado.

Não se contente em ser um simples “resolvedor de problemas”, mesmo porque você não tem condições para tal. Anuncie aos não crentes que porventura busquem o aconselhamento bíblico o Deus que “é poderoso para fazer infinitamente mais do que tudo quanto pedimos ou pensamos, conforme o seu poder que opera em nós” – para que – “a ele seja a glória, na igreja e em Cristo Jesus, por todas as gerações, para todo o sempre. Amém!” (Ef 3.20-21).

Milton C. J. Junior


[1] Jay Adams. Teologia do aconselhamento cristão, p. 14

[2] Edward T. Welch. Mas afinal, o que é o aconselhamento bíblico? – Coletâneas de Aconselhamento Bíblico, v. 2, p. 172

quinta-feira, 22 de março de 2018

Homens como árvores? - A importância da antropologia no aconselhamento

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Se você está familiarizado com as Escrituras certamente sabe que o título é uma alusão à resposta do cego que foi curado por Jesus em duas etapas, após este lhe perguntar: “Vês alguma coisa?”. A resposta completa foi: “Vejo os homens, porque como árvores os vejo, andando” (Mc 8.24,24).

Talvez você saiba que esta passagem não trata de antropologia, o que é também do meu conhecimento, portanto, não desista ainda da leitura achando que é perda de tempo ler um texto que já começa citando uma passagem “fora do contexto”, mas tenha paciência e continue comigo.

O capítulo 8 do evangelho de Marcos começa com o relato da multiplicação de pães e peixes. Jesus, compadecido de uma multidão que permanecia com ele já há três dias, realizou um milagre multiplicando sete pães e alguns peixinhos e, após a multidão comer de se fartar, ainda sobraram sete cestos de pedaços de pães (Mc 8.1-10).

Depois desse milagre maravilhoso, os fariseus tentam ao Senhor Jesus e pedem um sinal dos céus. Este responde que nenhum sinal lhes seria dado e a passagem paralela, no evangelho de Mateus, informa que, “senão o de Jonas” (Mc 8.11,12; cf Mt 16.4). Jesus estava se referindo à sua morte e ressurreição, que ocorreria mais à frente, perto do fim do seu ministério terreno.

Esse contexto é importante, pois ao passar para o outro lado do mar da Galileia, Jesus advertiu os discípulos que tivessem cuidado com o fermento dos fariseus e saduceus. Diante dessa palavra de Jesus os discípulos começaram a discutir entre si, dizendo: “É que não temos pão” (Mc 8.16). Jesus interrompe e pergunta àqueles que estavam com ele e testemunharam o milagre a razão de estar discutindo sobre o não ter pão. Eles não compreendiam? Ele ainda não tinha entendido quem estava com eles? O Senhor, então, pergunta sobre as duas ocasiões em que ele havia feito o mesmo tipo de milagre. Quantos cestos de pedaços eles haviam recolhido quando Jesus partiu 5 pães para cinco mil? “Responderam eles: Doze!” (Mc 8.19). Quantos cestos eles haviam recolhido quando ele partiu 7 pães para quatro mil? “Responderam: Sete!” (Mc 8.20).

Diante da resposta Jesus perguntou: “Não compreendeis ainda?” (Mc 8.32). Ele já os havia repreendido, também, nos versículos anteriores: “Por que discorreis sobre o não terdes pão? Ainda não considerastes, nem compreendestes? Tendes o coração endurecido? Tendo olhos, não vedes? E, tendo ouvidos, não ouvis?” (Mc 8.17-18). Aqueles homens, apesar de terem visto os milagres, ainda não tinham uma visão correta acerva de quem era Jesus.

É nesse contexto que acontece a cura em duas etapas (Mc 8.22-26). Chegando em Betsaida, um cego é levado até Jesus. Ele o leva para fora da aldeia, aplica saliva em seus olhos, impõe as mãos sobre ele e pergunta se ele estava enxergando. Ele via vultos. Ele via o que parecia ser árvores, mas como estavam andando, ele deduziu que se tratavam de homens. É nesse ponto que Jesus novamente coloca as mãos nos olhos daquele homem “e ele, passando a ver claramente, ficou restabelecido; e tudo distinguia de modo perfeito”.

A história que se segue (Mc 8.27-30) nos mostra a razão de Jesus ter curado aquele homem em duas etapas. Certamente não faltou poder a Jesus, mas uma lição precisava ser aprendida.

Indo para Cesaréia, Jesus perguntou aos discípulos o que os homens diziam a respeito dele. “João Batista; outros Elias; mas outros: Algum dos profetas”, responderam eles. Diante da resposta, Jesus pergunta diretamente aos discípulos: “Mas vós, quem dizeis que eu sou?” – e Pedro, tomando à frente, responde – “Tu és o Cristo”.

A lição é clara. Os homens podiam ter até uma certa noção a respeito de quem era Jesus. Ele, de fato, era um profeta. Mas essa visão acerca do Mestre era tão turva quando à do cego, antes de ser curado completamente. Já Pedro respondeu corretamente. Estava ali o Messias, aquele que havia sido profetizado no Antigo Testamento. Como é que um homem que a pouco foi acusado, junto com os demais discípulos, de não compreender e ter o coração endurecido agora “tudo distinguia de modo perfeito?”. A resposta está na passagem paralela, no evangelho de Mateus. Após a resposta de Pedro Jesus afirmou: “Bem-aventurado és, Simão Barjonas, porque não foi carne e sangue que to revelaram, mas meu Pai, que está nos céus” (Mt 16.17). Somente Deus pode tirar os homens de sua cegueira e fazê-los entender corretamente quem é o Salvador, o Senhor Jesus Cristo.

O entendimento correto a respeito de Jesus é essencial à salvação. Ele mesmo afirmou em sua oração sacerdotal: “E a vida eterna é esta: que te conheçam a ti, o único Deus verdadeiro, e a Jesus Cristo, a quem enviaste” (Jo 17.3).

Homens ou árvores?

Entretanto, não é preciso conhecer somente a respeito de Cristo corretamente. É preciso que o homem tenha também uma noção correta acerca de si mesmo, como um pecador que carece da graça e da misericórdia de Deus. Como afirmei desde o princípio, o propósito da passagem da cura do cego não é ensinar antropologia, mas mostrar que só é possível “ver” a Cristo corretamente por uma obra do próprio Deus, no caso, o Espírito Santo. Entretanto, da mesma forma que só foi possível ao cego enxergar os homens, fisicamente, por causa de Cristo, só é possível chegar a uma visão antropológica correta a partir da Palavra de Cristo, que nos revela o Pai.

Calvino ensina que “é notório que o homem jamais chega ao puro conhecimento de si mesmo até que haja antes contemplado a face de Deus, e da visão dele desça a examinar-se a si próprio”[1]. Enquanto não se vê pecador e carente de Deus o homem não buscará a Cristo, mas para que ele chegue à essa conclusão, é preciso que ele entenda primeiro o quão santo é o Senhor.

Aqueles que creem em Cristo são feitos filhos de Deus e agora fazem parte da família da fé. Agora começa uma nova caminhada, uma caminhada de santificação que tem por fim tornar cada cristão semelhante a Jesus Cristo, pois esta é a razão da nossa eleição, conforme Paulo (Rm 8.29; 1Jo 3.2; Cl 3.10). Conforme a Bíblia, o instrumento que Deus usará para forjar em seus filhos o caráter do seu Filho Unigênito, nosso irmão mais velho, é a Palavra. Ela é viva e eficaz, poderosa para discernir os pensamentos do coração (Hb 4.12). Ela é perfeita e restaura a alma (Sl 19.7). Ela é inspirada por Deus e útil para tornar o homem perfeito e perfeitamente habilitado para toda a boa obra (2Tm 3.16,17). Ela nos revela a Cristo, em quem temos todas as coisas suficientes para a vida e para a piedade (2Pe 1.3).

A despeito disso, muitos cristãos têm deixado de lado a Palavra e se voltado para as ciências sociais a fim de resolver os seus problemas, conflitos, traumas, etc. Talvez você questione: Qual seria o problema disso já que os teóricos tanto estudaram o homem e podem ter boas percepções a respeito dele? Dentre tantas questões, vou me deter à questão da antropologia.

Primeiro é preciso deixar claro que eu entendo que muitos desses homens, que se dedicaram e se dedicam a compreender o homem e seus problemas, têm boas intenções. Eles sabem que há algo errado, buscam descobrir as causas e tentam propor soluções. Agora deixe-me pegar emprestada a figura do cego curado em duas etapas para ilustrar o meu ponto: A despeito da boa vontade, os teóricos das ciências sociais enxergam o homem de forma errada.

O cego via homens como árvores, os teóricos das ciências sociais os enxergam como produto da evolução, como essencialmente bom, como carente de necessidades, etc. Por mais que a observação lhes dê certa noção de que algo está errado, eles nunca compreenderão a razão fundamental dos dilemas humanos. Eles desconsideram completamente a verdade de que o homem foi criado perfeito, à imagem e semelhança de Deus e para viver para a sua glória. Entender que o homem foi criado com um propósito específico e não que ele é simples fruto do acaso, num processo de evolução aleatório, vai fazer uma diferença grandiosa no aconselhamento. O aconselhamento é primariamente para a glória de Deus, levando o homem a estar contente em toda e qualquer situação, à medida em que se submete à Palavra de Deus. Ele não tem por fim principal “solucionar” os problemas do homem.

Por desconsiderarem a Deus e a criação com um propósito específico, os teóricos humanistas também não entendem que houve uma queda, quando Adão caiu em transgressão levando a ele e toda a sua posteridade a estar afastada de Deus (Rm 3.23). Eles não enxergam o homem como um pecador. O resultado disso é que

“um estudo superficial da história da psicologia e de suas patologias propostas revela uma tentativa constante de amenizar a culpa, responsabilizando o meio ambiente, a hereditariedade ou os instintos primitivos evolucionários pelas respostas verbais ou comportamentais”[2],

ou seja, o problema sempre está “lá fora”.

À vista disso, concordo integralmente com o que escreveu Jay Adams:

“Tudo que se pode dizer de Freud é que suas ideias encorajaram pessoas irresponsáveis a persistirem em sua irresponsabilidade e a aumentá-la. Ele deu sua aprovação à conduta irresponsável e a fez respeitável. [...] Freud não fez com que as pessoas se tornassem irresponsáveis; mas forneceu uma fundamentação racional, filosófica e pseudo-científica para as pessoas usarem a fim de justificar-se”[3].

Sem uma antropologia correta, que leve em conta a criação, a queda e a redenção, é impossível tratar efetivamente os problemas da alma. Mais uma vez, recorro à John Babler, que diz:

“O verdadeiro cuidado das almas se importa com o problema fundamental da alma humana, e por isso, a doença do pecado deve ser abordada antes de qualquer outro problema. Munir um aconselhado com mecanismos de adaptação que se limitam a prover alívio temporário pode deixar a sua alma em uma condição devastadora. [...]

O evangelho de Cristo deve ser a prioridade máxima na vida do aconselhado, porque qualquer tentativa de solução que desconsidere o evangelho redentor desculpará o problema, ensinará a justiça própria e apaziguará a culpa, o que endurecerá ainda mais o coração, obscurecendo a compreensão”[4].

Desconsiderar a Deus e o pecado humano, vão levar inevitavelmente a propostas equivocadas de como “consertar” o que está errado. É claro que muito pode ser dito a respeito da antropologia bíblica, mas meu ponto aqui é apontar para a importância de um entendimento correto a respeito do homem a fim de tentar ajuda-lo em seus dilemas. Esse conhecimento só se dá pela Palavra de Deus.

“Adquirir uma perspectiva bíblica equipa o conselheiro para a tarefa de corrigir o que foi arruinado pela busca pecaminosa de uma sabedoria inadequada. O conselheiro deve trabalhar diligentemente na exegese e na compreensão das Escrituras. À medida que as Escrituras revelam o caráter de Cristo, homens e mulheres podem conhecer a Deus. Uma pessoa nunca mais será a mesma depois de ter conhecido a Deus”[5].

Tratar da alma humana sem essa séria consideração é como tentar chegar ao Rio Grande do Sul enquanto dirige pela Br-101 no sentido de Recife. Nem com toda a boa vontade do mundo você acertará. Portanto, não paute o seu aconselhamento pela visão daqueles que enxergam homens como árvores, mas, com a iluminação do Espírito Cristo, aconselhe com as lentes corretivas da suficiente Palavra de Deus.

Milton C. J. Jr.


[1] João Calvino. Institutas, Livro I – p. 42 (Ed. Clássica)

[2] John Babler (editor). Os fundamentos do aconselhamento bíblico – p. 102

[3] Jay Adams. Conselheiro capaz – p. 34

[4] John Babler (editor). Os fundamentos do aconselhamento bíblico – p. 92

[5] John Babler (editor). Os fundamentos do aconselhamento bíblico – p. 98

domingo, 18 de março de 2018

Quando a tristeza e o desânimo o alcançam

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Você se lembra do relato bíblico acerca de Pedro andando sobre as águas? Mateus registra que, naquela ocasião, os discípulos tomaram um barco a fim de passar para a outra margem do lago enquanto Jesus despedia a multidão que tinha sido alimentada por ele (Mt 14.13-22). Os discípulos já estavam no meio do lago e as ondas batiam forte contra o barco quando eles viram alguém caminhando sobre as águas. Eles ficaram temerosos, achando se tratar de um fantasma, mas Jesus lhes disse para não se assustarem, pois era ele que ali estava.

Pedro rapidamente respondeu que se era mesmo Jesus, que era para mandá-lo ter com ele sobre as águas, o que foi ordenado pelo Mestre. Pedro, intrépido, sob a Palavra de Jesus andou sobre as águas! Entretanto, ao tirar os olhos de Cristo e reparar na força das ondas, começou a afundar.

Este conhecido relato pode ilustrar de forma interessante a caminhada cristã. Muitos crentes, em determinados momentos da vida, quer seja por causa de pecado ou por causa de provações e tentações, parecem perder a confiança em Deus e em sua Palavra. Isso os leva à tristeza e até mesmo ao desespero. Não são poucos os irmãos que chegam a questionar se realmente são crentes.

Pela graça de Deus, temos em sua Palavra tudo aquilo que é necessário para nos ensinar e nos dar esperança. Paulo afirma aos romanos que “tudo, quanto, outrora, foi escrito para o nosso ensino foi escrito, a fim de que, pela paciência e pela consolação das Escrituras, tenhamos esperança” (Rm 15.4). Tiago, referindo-se ao profeta Elias, afirmou ser ele um “homem semelhante a nós, sujeito aos mesmos sentimentos” (Tg 5.17). Pensando nisso, você pode ter a firme convicção de que não é o primeiro, nem tampouco será o último, a titubear na fé.

Pense, por exemplo, naquele que é conhecido como “o homem segundo o coração de Deus”, o Rei Davi. No livro dos Salmos você percebe o quanto ele conhecia ao Senhor e como este conhecimento regulava a forma como ele se portava em sua vida. Comecemos com o Salmo 3. Ele foi escrito por ocasião de sua fuga, quando seu filho Absalão o perseguia. Naquele momento ele orou: “Senhor, como tem crescido o número dos meus adversários! São numerosos os que se levantam contra mim” [...] – e, após mencionar o momento complicado em que vivia, afirmou sua convicção – “Porém tu, Senhor, és o meu escudo, és a minha glória e o que exaltas a minha cabeça”. O resultado desta convicção está no v. 3: “Deito-me e pego no sono; acordo, porque o Senhor me sustenta. Não tenho medo de milhares do povo que tomam posição contra mim de todos os lados”. Que convicção magnífica, que segurança Davi demonstrava ter no Senhor.

No Salmo 4 ele ora pedindo que o Senhor o responda. Ele se dirige ao Senhor como o “Deus da minha justiça”, [que] na angústia, me tens aliviado; tem misericórdia de mim e ouve a minha oração”. A certeza acerca de quem é o seu Deus leva Davi a terminar dizendo: “Em paz me deito e logo pego no sono, porque Senhor, só tu me fazes repousar seguro”. Mais uma vez você percebe que a segurança no coração de Davi é fruto de sua convicção.

O conhecido Salmo 23, mais uma vez, demonstra a confiança do rei de Israel: “O Senhor é meu pastor; nada me faltará”. Esta certeza o faz declarar: “Ainda que eu ande pelo vale da sombra da morte, não temerei mal nenhum, porque tu estás comigo; o teu bordão e o teu cajado me consolam”.

Temos ainda no Salmo 40 Davi declarando firmemente: “Esperei confiantemente pelo Senhor; ele se inclinou para mim e me ouviu quando clamei por socorro. Tirou-me de um poço de perdição, de um tremedal de lama; colocou-me os pés sobre uma rocha e me firmou os passos”.

Entretanto, mesmo com toda essa convicção, no início do Salmo 13 vemos um Davi diferente. O rei está totalmente desanimado por não perceber a ação de Deus em sua trajetória. Isso o faz perguntar por quatro vezes nos dois primeiros versículos: “Até quando, Senhor?”. Sim, o homem segundo o coração de Deus também teve as suas convicções abaladas e perguntou ao Senhor: “Esquecer-te-ás de mim para sempre?”. A angústia era tamanha que ele demonstra a sua desesperança: “Até quando ocultarás de mim o rosto? Até quando estarei eu relutando dentro de minha alma, com tristeza no coração cada dia?”. Ao olhar para o início do Salmo 13 você percebe que não está sozinho quando, em meio às tribulações, se vê sem esperança.

A Confissão de Fé de Westminster, em seu décimo oitavo capítulo, ao tratar da certeza da graça e da salvação, afirma algumas coisas importantes. Na seção 2 aprendemos que “esta certeza [da salvação] não é uma mera persuasão conjectural e provável, fundada numa falsa esperança, mas uma infalível segurança da fé, fundada na divina verdade das promessas de salvação”, ou seja, a certeza da salvação é fruto da confiança naquilo que Deus promete em sua Palavra.

Quando, porém, você olha para a seção 4, verifica que os teólogos de Westminster reconheciam que, por vezes, os cristãos podem ter sua convicção abalada, ao ensinarem que “por diversos modos podem os crentes ter a sua segurança de salvação abalada, diminuída e interrompida negligenciando a conservação dela, caindo em algum pecado especial que fira a consciência e entristeça o Espírito Santo, cedendo a fortes e repentinas tentações [...]”.

Este ensino deve trazer consolo e esperança. Consolo por saber que, ainda que não tendo certeza da salvação, um verdadeiro salvo nunca a perderá. Esperança por saber que “a certeza de salvação poderá, no tempo próprio, ser restaurada pela operação do Espírito, e por meio delas eles são, no entanto, suportados para não caírem no desespero absoluto”.

A Confissão de Fé, na seção anterior (3), já havia afirmado que “esta segurança infalível não pertence de tal modo à essência da fé, que um verdadeiro crente, antes de possuí-la, não tenha de esperar muito e lutar com muitas dificuldades”. A caminhada cristã é, portanto, uma caminhada de lutas contra a nossa própria incredulidade, mas como continua ensinando esta seção da confissão, um verdadeiro crente “sendo pelo Espírito habilitado a conhecer as coisas que lhe são livremente dadas por Deus, ele pode alcançá-la sem revelação extraordinária, no devido uso dos meios ordinários”.

Isso nos faz voltar ao ponto: Se a certeza pode ser alcançada por meio dos meios ordinários, isso significa que a leitura das Escrituras (meio ordinário) é indispensável para que os cristãos fracos se fortaleçam. É se lembrando da Palavra e também daquilo que Deus já executou na história, inclusive em sua história pessoal, que os crentes voltarão a ter sua convicção restabelecida, levando-os a descansar e confiar novamente no Senhor.

Isso acontece no Salmo 13, quando Davi, depois das queixas coloca diante do Senhor sua petição (v. 3 e 4). Ao orar, Davi parece se recordar daquilo que ele já havia experimentado do Senhor, por isso termina afirmando: “No tocante a mim, confio na tua graça; regozije-se o meu coração na tua salvação. Cantarei ao Senhor, porquanto me tem feito muito bem” (v. 5 e 6). Repare bem! Deus ainda não o havia livrado das aflições que o levaram ao desânimo. Contudo, ele se lembrou da graça de Deus e do quanto o Senhor já havia feito de bem a ele, por isso, seu coração que estava triste a cada dia (v. 2) se torna alegre no versículo seis.

É por tudo isso que você precisa constantemente lembrar ao seu coração a Palavra do Senhor. É por meio dela que Deus fortalecerá a sua convicção a respeito daquilo que Jesus Cristo, o Redentor de sua alma, fez em seu favor. É por meio da Escritura que você poderá exercer a fé bíblica, que é a certeza e a convicção a respeito do que Deus diz em sua Palavra.

Em momentos de tribulação, desânimo e tristeza, faça então como o salmista. Pergunte “Por que você está assim tão triste, ó minha alma? Por que está assim tão perturbada dentro de mim?” – a fim de relembrá-la: “Ponha sua esperança em Deus! Pois ainda o louvarei; ele é o meu Salvador e o meu Deus” (Sl 43.5 – NVI). Como Paulo afirmou aos romanos, “aquele que não poupou o seu próprio Filho, antes, por todos nós o entregou, porventura não nos dará graciosamente com ele todas as coisas? [...] Quem nos separará do amor de Cristo? [...] Porque eu estou bem certo de que nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem os principados, nem as coisas do presente, nem do porvir, nem os poderes, nem a altura, nem a profundidade, nem qualquer outra criatura poderá separar-nos do amor de Deus, que está em Cristo Jesus, nosso Senhor” (Rm 8.31-39).

Firmado na Palavra de Cristo você pode deixar de lado a tristeza e o desânimo.

Que Deus o ajude!

Milton C. J. Junior

segunda-feira, 12 de março de 2018

A suficiência da Escritura para a vida e piedade

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Os cristãos, geralmente, não têm problema em afirmar a suficiência da Bíblia para a salvação. Porém, no que diz respeito às emoções, pensamentos, atitudes e comportamento, não são poucos os que negam a suficiência da Palavra. Prova disso é que a literatura de autoajuda é abundantemente consumida, inclusive entre crentes.

Isso é um claro contrassenso. Se a Escritura é suficiente para “nos tornar sábios para a salvação em Cristo Jesus” (2Tm 3.15) ela tem de ser também suficiente para tratar das nossas emoções e atitudes.

Conceitos e explicações seculares têm tomado cada dia mais espaço dentro da igreja e teorias têm ganhado o “status” de verdades absolutas. Tem sido ensinado de muitos púlpitos, por exemplo, que a maioria dos problemas dos crentes é causada pela falta de amor-próprio, o que é uma ideia totalmente antibíblica. A Escritura nunca ensinou que devemos nos amar, mas, sim, que devemos amar o próximo como já nos amamos (Mt 22.39; Ef 5.29).

Mais ainda, ansiedade virou doença, orgulho, egoísmo e soberba receberam o pomposo nome de “transtorno de personalidade narcisista”, e a cada ano surgem novas síndromes e transtornos que tentam “patologizar” o que a Bíblia chama de pecado. Terapeutas têm tentado ajudar seus pacientes a “viver melhor” ao fazê-los crer que eles não são culpados pelos seus atos, antes, a culpa está na forma como foram criados ou no meio em que vivem.

Cada vez menos os crentes recorrem às Escrituras e aos gabinetes pastorais para aconselhamento bíblico a fim de entender seus sentimentos e comportamento, pois, em seu entendimento, isso não é trabalho pastoral, requer ajuda de um profissional qualificado. David Powlison mostra em um artigo que não é à toa que a igreja tenha sido criticada por dois psicólogos seculares, O. Hobart Mower e Karl Manninger. “Mower perguntou: ‘Será que a religião evangélica vendeu seu direito de primogenitura pela panela de cozido da psicologia?’ Menninger escreveu um livro cujo título soa provocador: Whatever Hapenned of Sin? (O que aconteceu com o pecado?)”[1].

Um caminho melhor

Na contramão de tudo isso, o apóstolo Pedro afirma categoricamente que pelo divino poder de Deus “nos têm sido doadas todas as coisas que conduzem à vida e à piedade, pelo conhecimento completo daquele que nos chamou para a sua própria glória e virtude” (2Pe 1.3). Para Pedro, se o homem conhece ao Senhor, ele tem tudo aquilo de que necessita para a vida e piedade. Observe bem, Pedro não diz algumas coisas, mas tudo o que é necessário.

A igreja deve urgentemente voltar os olhos para a Palavra de Deus, que é a maneira que temos de guardar puro o nosso caminho (Sl 119.9). Precisamos crer no que Paulo escreveu à Timóteo, que a Palavra de Deus “é útil para o ensino, para a repreensão, para a correção e educação na justiça a fim de que o homem de Deus seja perfeito e perfeitamente habilitado para toda boa obra” (2Tm 3.16,17). Uma possível tradução para a palavra perfeito é “completo”, ou seja, a Palavra é útil para que o homem seja completo.

O escritor da epístola aos Hebreus demonstra a eficácia da Palavra de Deus ao ensinar: “Porque a Palavra de Deus é viva, e eficaz, e mais cortante do que qualquer espada de dois gumes, e penetra até ao ponto de dividir alma e espírito, juntas e medulas, e é apta para discernir os pensamentos e propósitos do coração (Hb 4.12). Perceba que o escritor afirma que a Palavra sonda o mais profundo do nosso ser e revela as intenções do nosso coração.

A Bíblia ensina que o coração é o centro de controle do homem. É em virtude disso que o livro de Provérbios ensina que devemos guardar, sobretudo, o coração, porque dele procedem as fontes da vida (Pv 4.23). É por isso também que o Senhor Jesus, confrontando os fariseus, afirmou que a boca fala do que está cheio o coração (Mt 12.34) e ensinando os discípulos disse que do coração é que procedem os maus desígnios (Mt15.19).

O rei Davi, no Salmo 139, faz um pedido que deve nos servir de exemplo: “Sonda-me, ó Deus, e conhece o meu coração, prova-me e conhece os meus pensamentos; vê se há em mim algum caminho mau e guia-me pelo caminho eterno” (Sl 139.24). Ele faz o pedido certo para a pessoa certa. Só Deus pode esquadrinhar o coração (Jr 17.10); e, como vimos, ele o faz por meio da Palavra (Hb 4.12).

Sendo o coração o que controla o homem e sabendo que é a Palavra de Deus que penetra o coração, devemos recorrer a ela, encher o coração dela, ser santificados por meio dela (Jo 17.17). Ela é suficiente para nossa vida e piedade.

Usando a Bíblia corretamente

Quando falamos da suficiência das Escrituras para a vida e piedade é necessário deixar claro que isso implica uma fiel exposição da Palavra.

Ao recorrer à Bíblia para buscar orientação não devemos procurar simplesmente versículos isolados que validem ou invalidem uma determinada prática, mas estudar com seriedade, buscando um entendimento correto do texto dentro de seus contextos. Fazendo assim, teremos mandamentos e princípios que orientarão com precisão a nossa vida.

A falta de um entendimento correto da Palavra de Deus tem levado muitos a duvidar de que ela é capaz de orientar o homem quanto às suas emoções e comportamento, porém, como afirma Mark Dever: “A Palavra de Deus sempre foi o instrumento que Ele escolheu para criar, convencer, converter e conformar o seu povo. desde o primeiro anúncio do evangelho em Gênesis 3.15 até à promessa inicial feita à Abraão, em Gênesis 12.13, bem como até à regulação dessa promessa, por meio de sua Palavra, nos Dez Mandamentos (Êxodo 20), Deus outorgou vida, saúde e santidade ao seu povo por intermédio de sua Palavra.[2]

Isso torna indispensável ao crente o debruçar-se sobre a Palavra e a busca da iluminação do Espírito a fim de ter um conhecimento correto da Escritura e aplicá-la em todas as áreas da vida.

Conscientes de que vivemos numa sociedade que busca explicar o comportamento humano usando princípios antibíblicos, tenhamos, de fato, a Bíblia como nossa regra de fé e prática e que ao invés de recorrer à sabedoria deste mundo, busquemos o conhecimento da Palavra de Deus enchendo o coração dela.

Certamente o Senhor se agradará de nós e derramará suas bênçãos.

Milton C. J. Junior


[1] David Powlison. Integração ou inundação? In: Religião de Poder. São Paulo: Cultura Cristã, 1998, pp. 166,167

[2] Mark Dever & Paul Alexander. Deliberadamente Igreja. São Paulo: Fiel, 2005, pp. 41,42

sexta-feira, 9 de março de 2018

Aconselhamento: o que tem a ver comigo?

Pontos-de-interrogação

Uma situação cotidiana

Depois do futebol, numa roda de amigos, um deles acaba “soltando” que está prestes a se divorciar e fala de suas razões para isso. Rapidamente surgem várias opiniões, totalmente distintas umas das outras, apoiando ou reprovando a ideia. Isso é aconselhamento.

Na escola, um rapaz queixa-se com uma colega sobre a atitude de seus pais em proibi-lo de ir a um show e que isso o tinha deixado furioso. A colega, depois de ouvir, passa a falar sobre como ele deveria agir em relação a seus pais. Eis aqui novamente o conselho!

Duas amigas se encontram no supermercado. Durante a rápida conversa uma menciona os problemas que está enfrentando com o comportamento do filho. A outra, tentando ajudar, dá algumas dicas de educação de filhos. Isso também é aconselhar.

Há um ditado que diz que “se conselho fosse bom não se dava, vendia”, porém, os exemplos mencionados acima servem para demonstrar que, quer queiramos, quer não, estamos diariamente envolvidos com aconselhamento, seja na condição de conselheiros ou de aconselhados. Ainda que nem todos desenvolvam um ministério “oficial” de aconselhamento, a verdade é que aconselhamos a todo o tempo.

A diferença de uma para outra pessoa que aconselha é a base que usam para isso e aí está o principal dos problemas. Como vivemos em uma sociedade psicologizada, conceitos como “auto-estima”, “necessidades sentidas” e mais outros tantos focados sempre no ego humano já fazem parte da visão de mundo de muitos crentes que, ao invés de recorrer à infalível Palavra de Deus, dão conselhos baseados em uma visão secular da vida.


Não ande no conselho dos ímpios

Sendo o aconselhamento algo tão presente na vida do ser humano, percebemos que não é sem razão a advertência da Palavra de Deus: “Bem-aventurado o homem que não anda no conselho dos ímpios, não se detém no caminho dos pecadores, nem se assenta na roda dos escarnecedores” (Sl 1.1).

Aqueles que não temem a Deus não se preocupam com a sua glória, portanto, ao aconselhar não levarão em conta as ordenanças e os princípios bíblicos.

Como exemplo, pense em um dos casos citados no início, mas agora com mais informações. Depois do futebol, um grupo de amigos senta para beliscar uns petiscos e conversar um pouco. Um deles, o Luís, professor de Escola Dominical em sua igreja local, afirma que ultimamente tem percebido que não ama mais a esposa como no início do casamento, que o relacionamento esfriou e que eles têm travado grandes discussões. Ele confessa estar muito triste com tudo isso e que tem pensado seriamente no divórcio.

Seu amigo Fábio, que não é crente, querendo ajudar, pondera que sem amor é impossível sustentar o casamento e que se ele não “sentia” mais nada pela esposa, o melhor mesmo era separar, afinal de contas, o importante mesmo é ser feliz.

Qual o problema com esse conselho? Justamente por não levar em conta o Senhor e a sua Palavra o “conselheiro” focou apenas o resultado que traria “alívio” ao Luís. Para ele não importa qual a visão bíblica sobre o casamento, quais circunstâncias permitem o divórcio, ele também não entende que amor, nas Escrituras, é bem mais que um sentimento, mas uma atitude ordenada pelo Senhor. A única coisa que importa para Fábio é “resolver” o problema do seu amigo e, se Luís der ouvidos ao conselho estará somente complicando ainda mais a sua vida, por quebrar o padrão estabelecido pelo seu Deus, pois, como afirmou Salomão, “os pensamentos dos justos são retos, mas os conselhos do perverso, engano” (Pv 12.5).


Cuide para não dar conselhos ímpios

Outro problema que acontece corriqueiramente diz respeito a crentes dando conselhos ímpios. É bem verdade que todo cristão que se preza não hesita em afirmar que a Bíblia é a sua única regra de fé e de prática, mas na prática, muitos demonstram não estar muito preocupados com o que foi estabelecido pelo Senhor.

Um episódio bíblico exemplifica perfeitamente essa questão. Abrão foi chamado por Deus para sair da sua terra e ir para uma terra que o Senhor iria mostrar. O Senhor ainda prometeu que faria dele uma grande nação (cf Gn 12.1-2). Abrão era casado com Sarai, que era estéril, mas, a despeito disso, o Senhor prometeu que lhe daria um filho. Como se passaram 10 anos e Sarai ainda não tinha engravidado, ela resolveu dar um jeito na situação, tomou sua serva Agar, deu a Abrão para que se deitasse com ela e Sarai se edificasse com filhos por meio dela (cf Gn 16.2).

O texto afirma que “Abrão anuiu ao conselho de Sarai”. Mesmo sendo uma serva do Senhor, Sarai dá um conselho ímpio e, ao acatar o conselho, Abrão fez de seu lar uma grande confusão, além do fato de ter colocado em dúvida a Palavra do Senhor.

Como servos de Deus, devemos estar bem vigilantes para não cairmos na cilada de aconselhar de forma ímpia, na expectativa de solucionar os problemas de forma rápida. Não são poucas as vezes que cristãos, sem ter o devido cuidado em avaliar biblicamente as situações, têm servido de instrumento de destruição e não de edificação na vida do próximo.

É necessário agir como se segue.


Aconselhe a Palavra de Deus

Cristianismo e aconselhamento são duas coisas que estão intrinsecamente ligadas. Os membros do corpo de Cristo são chamados a aconselhar, admoestar, repreender, instruir, corrigir, e consolar uns aos outros (Rm 15.14; Cl 3.16; Gl 6.1; 1Ts 5.14).

Para isso, o cristão deve crer que na Escritura Sagrada temos tudo aquilo que é necessário para nossa vida e para a nossa piedade (cf 2Pe 1.3). O apóstolo Paulo, escrevendo ao jovem pastor Timóteo, afirmou que “Toda a Escritura é inspirada por Deus” – e por isso – “útil para o ensino, para a repreensão, para a correção, para a correção, para a educação na justiça” (2Tm 3.16). Diante disso, o resultado do uso das Escrituras no aconselhamento não poderia ser outro, senão o que Paulo afirma no versículo seguinte: “a fim de que o homem de Deus seja perfeito e perfeitamente habilitado para toda a boa obra” (2Tm 3.17).

Deus nos escolheu antes da fundação do mundo, a fim de sermos conformes à imagem de seu Filho, nosso Redentor, Cristo Jesus (cf Rm 8.29). Dia após dia ele nos aperfeiçoará, santificando as nossas vidas e o meio que ele usará para isso será sempre a sua Palavra. Ao orar pelos seus discípulos, foi isso que o Senhor Jesus pediu ao Pai: “Santifica-os na verdade; a tua palavra é a verdade” (Jo 17.17).

Se queremos, portanto, ser eficazes ao cumprir a ordenança de aconselharmos uns aos outros, precisamos:

a)Conhecer a Escritura – O apóstolo Paulo exortou Timóteo a que procurasse se apresentar diante de Deus como um obreiro aprovado e que maneja bem a palavra da verdade (cf 2Tm 2.15). Devemos investir tempo na leitura da Bíblia Sagrada, não simplesmente fazendo uma leitura superficial, mas procurando entender os textos dentro de seus devidos contextos a fim de poder aplica-los de forma correta às situações que nos sobrevém em nossa vida cotidiana.

Foi por entender a importância do conhecimento da Palavra de Deus que o salmista afirmou que o homem bem aventurado é aquele que tem o seu prazer “na lei do Senhor, e na sua lei medita de dia e de noite” (Sl 1.2).

b) Praticar a Escritura – Não basta conhecer a Palavra de Deus, é necessário coloca-la em prática. Jesus afirma que aqueles que ouvem a Palavra e não praticam são insensatos (cf Mt 7.26). Seu irmão, Tiago, ensina que aqueles que somente ouvem a Palavra e não a praticam, enganam a si mesmos (cf Tg 1.22). Entretanto, continua Tiago: “aquele que considera, atentamente, na lei perfeita, lei da liberdade, e nela persevera, não sendo ouvinte negligente, mas operoso praticante, esse será bem-aventurado no que realizar” (Tg 1.25).

Podemos e devemos colocar em prática a Lei do Senhor, não por causa da nossa própria capacidade, mas porque contamos com o auxílio daquele que opera em nós o querer e o realizar, conforme a sua boa vontade e, por isso mesmo, nos ordena a desenvolver a nossa salvação (cf Fl 2.12,13).

A razão de buscar o conhecimento da Palavra (“Guardo no coração as tuas palavras” – Sl 119.11a) não pode ser outra, senão o desejo de honrar o Senhor ao praticá-la (“para não pecar contra ti” – Sl 119.11b).

Devemos ser como Esdras, que dispôs “o coração para buscar a Lei do Senhor, e para cumprir, e para ensinar em Israel os seus estatutos e juízos” (Ed 7.10). A última das atitudes de Esdras é a que vermos a seguir e que precisamos também fazer.

c) Aconselhar com a Escritura – Vivemos em meio a uma sociedade onde várias vozes querem se fazer ouvir, e dizem saber como entender o homem, resolver seus conflitos interiores e modificar o seu comportamento.

Como afirmou Paulo, devemos ter todo o cuidado para não sermos enredados com filosofias e vãs sutilezas que são conforme a tradição dos homens e os rudimentos do mundo e não segundo Cristo (cf Cl 2.8).

No tempo do profeta Jeremias, falsos profetas confundiam o povo de Israel, “instruindo” o povo conforme os sonhos que diziam ter. O Senhor, por meio de Jeremias, então afirmou: “o profeta que tem sonho conte-o como apenas sonho; mas aquele em que está a minha palavra, fale a minha palavra com verdade” (Jr 23.28).

Guardadas as devidas proporções, devemos entender que as teorias seculares que tentam explicar o homem e a forma como ele se comporta também acabam instruindo de forma errada. Nessas teorias, o pecado passa a ser visto como doença (ou transtorno) e a responsabilidade pessoal é deixada de lado, pois o problema geralmente está no meio em que se vive ou naquilo que outros fizeram contra nós. O homem, na maioria das vezes, é visto como “vítima”.

É dever da Igreja do Senhor fazer ecoar a voz daquele que entende perfeitamente o homem e sabe exatamente qual é a razão de todos os seus problemas. Devemos proclamar a voz do Criador e único capaz de redimir o homem.

Sendo a Escritura suficiente para a vida e para a piedade (cf 2Pe 1.3), devemos ter a mesma convicção de Davi: “A Lei do Senhor é perfeita e restaura a alma” (Sl 19.7a). O que ele afirma aqui, literalmente, é que a Lei do Senhor traz a alma de volta para Deus.

É por tudo isso que devemos ser diligentes em nossa tarefa de aconselhar uns aos outros, instruindo-nos mutuamente pela Palavra de Deus. A Bíblia deve ser o nosso livro texto para avaliar os problemas e trazer a solução.

Que “habite, ricamente, em vós a palavra de Cristo; instruí-vos e aconselhai-vos mutuamente em toda a sabedoria, louvando a Deus, com salmos, e hinos, e cânticos espirituais, com gratidão, em vosso coração” (Cl 3.16).

Isso será trabalhoso? Certamente! Mas permaneça firme e inabalável, sendo abundante na obra do Senhor, sabendo que nele o nosso trabalho não é vão (cf 1Co 15.58).

Milton C. J. Junior