terça-feira, 9 de junho de 2020

A importância da teologia no aconselhamento


Certa vez, alguns dias após uma aula que ministrei em um treinamento de aconselhamento bíblico, fui indagado por um irmão a respeito de uma afirmação que eu havia feito na classe. Eu havia ensinado que incorremos em idolatria todas as vezes que pecamos para conseguir o que queremos ou quando pecamos porque não conseguimos o que queremos. Essas atitudes (pecados) deixariam claro que o coração está sendo governado por um (ou mais) ídolo(s) e não pelo Senhor.

Para exemplificar, falei sobre a história de Jacó. Desde que viu a Raquel pela primeira vez ele havia se apaixonado e trabalhou sete anos para o seu sogro, a fim de casar com a moça. Labão, aproveitando-se da situação, conduziu a filha mais velha, Lia, para o casamento e eles coabitaram, fato que só foi notado por Jacó no dia seguinte, pela manhã. Jacó, que já estava casado, topou trabalhar mais sete anos e casou-se também com Raquel, estabelecendo uma bigamia e incorrendo em adultério, o que é pecado (Gn 29.1-30). Com isso, eu disse que podíamos perceber que o amor de Jacó por Raquel dominava o seu coração e ele agia em função disso e não segundo a Lei do Senhor.

A indagação foi, então, a respeito da minha afirmação de que Jacó havia adulterado. O irmão entendia que não havia adultério naquela relação, pois era um período pré lei e aquele casamento era legítimo na cultura em que vivia Jacó. Minha resposta foi que tudo dependeria da forma como se compreende o Pacto de Deus com o homem e que a afirmação dele tinha como pressuposto a ideia de que antes do Sinai não havia ainda os dez mandamentos, incluindo o sétimo, não adulterarás.

Antes de explicar o que está por trás da minha afirmação, preciso mencionar algo importante. Muitas pessoas, ao pensar em aconselhamento bíblico, entendem que ele consiste apenas em atirar alguns versículos isolados, geralmente fora do contexto, na cabeça das pessoas e as exortarem a se adequar ao que o texto está dizendo. Daí entenderem que é necessário o encaminhamento a profissionais, especialistas no cuidado da alma, que estudaram e sabem do que estão falando. Entretanto, como afima Kellemen,

“quando pessoas [...] pedem ajuda e esperança, a igreja não tem que se sentir inferior e encaminhá-las a ‘especialistas de fora’. Nós não temos de borrifar uns poucos princípios cristãos à sabedoria mundana. Nós não temos que seguir a rasa abordagem de concordância de um problema, um versículo, uma resposta[1].

Longe disso! Em vez disso, John Babler aponta o caminho correto:

“Adquirir uma perspectiva bíblica equipa o conselheiro para a tarefa de corrigir o que foi arruinado pela busca pecaminosa de uma sabedoria inadequada. O conselheiro deve trabalhar diligentemente na exegese e na compreensão das Escrituras. À medida que as Escrituras revelam o caráter de Cristo, homens e mulheres podem conhecer a Deus. Uma pessoa nunca mais será a mesma depois de ter conhecido a Deus”[2].

Conselheiros precisam estudar teologia, pois o conselho de Deus emana da sã doutrina expressa nas páginas da Escritura Sagrada que, nas palavras de Paulo, “é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a repreensão, para a correção, para a educação na justiça, a fim de que o homem de Deus seja perfeito e perfeitamente habilitado para toda boa obra” (2Tm 3.16-17). “O uso superficial, não-teológico da Bíblia confunde e desencoraja os consulentes (assim como representam mal Deus pela má compreensão do ensino da Bíblia)”[3].

Volto, então, à minha afirmação a respeito do adultério de Jacó. Como pastor presbiteriano, subscrevo as Escrituras Sagradas do Velho e Novo Testamento como única regra de fé e prática, bem como a Confissão de Westminster e seus Catecismos Maior e Breve como sistema expositivo de doutrina. Este é meu norte teológico.

Como afirmei ao irmão que me indagou, esta é uma questão diretamente ligada à doutrina do Pacto. Creio que Deus estabeleceu com Adão, e nele com sua posteridade, o que é chamado de Pacto de Obras em que a vida lhe foi prometida “sob a condição de perfeita obediência pessoal” (CFW VII.II). Onde estava o padrão para a obediência de Adão? O Catecismo Maior responde na “Pergunta 92. O que Deus revelou primeiramente ao homens como regra de sua obediência? Resposta: A regra de obediência revelada a Adão, no estado de inocência, e a todo gênero humano nele, além do mandamento especial de não comer do fruto da árvore da ciência do bem e do mal, foi a lei moral”. Para não restar dúvidas de que o ensino confessional aponta para a Lei já presente no Éden, basta olhar para a resposta à “Pergunta 98. Onde se acha a lei moral resumidamente compreendida? Resposta: A lei moral acha-se resumidamente compreendida nos Dez Mandamentos, que foram dados pela voz de Deus no monte Sinai [...]”.

Talvez aqui, aqueles que não estão acostumados com o ensino da Confissão de Fé de Westminster perguntem: E onde está isso na Bíblia? Pergunta importante que, creio eu, seja fácil de responder.

Ao criar o homem o Senhor o fez segundo a sua própria imagem e semelhança (Gn 1.26-28). Isso significa que o homem foi criado santo, como Deus é Santo. Sendo a Lei a expressão do caráter de Deus ela também não poderia ser outra coisa, senão o que afirma Paulo: “Por conseguinte, a lei é santa; e o mandamento, santo, e justo, e bom (Rm 7.12). Nesta mesma epístola aos romanos Paulo afirma que “quando os gentios, que não têm lei, procedem, por natureza, de conformidade com a lei, não tendo lei, servem eles de lei para si mesmos. Estes mostram a norma da lei gravada no coração (Rm 2.13-14). Ou seja, ainda que Paulo esteja tratando do cumprimento externo da lei, ele afirma que a norma da lei está gravada no coração do homem e isso decorre de, mesmo caído, ele ainda ser imagem e semelhança de Deus.

Nos Dez Mandamentos temos a expressão da Lei após o pecado, que consiste em mostrar ao homem qual é o padrão estabelecido no início à Adão. Tome como exemplo o sexto mandamento, não matarás. Onde você o encontra no Éden? Ele pode ser visto de forma positiva na ordem dada ao homem para que trabalhasse no Jardim. Como você pode ter certeza disso? Basta olhar a aplicação que Paulo faz do mandamento para uma vida de santidade, ao afirmar: Aquele que furtava não furte mais; antes, trabalhe, fazendo com as próprias mãos o que é bom, para que tenha com que acudir ao necessitado” (Ef 4.28). O que você pode perceber é que para cumprir o sexto mandamento não basta deixar de roubar. O contrário de roubar não é deixar de roubar, mas trabalhar e doar. O mandamento é dado de forma negativa no Sinai, porque deixou de ser praticado de forma positiva, em decorrência da queda do homem.

Com respeito ao adultério, a Lei está da mesma forma presente no Éden, por ocasião da criação. Deus faz um homem para uma mulher. Aqui está o estabelecimento do casamento heterossexual, monogâmico e perene. Qualquer atitude fora desse padrão constitui-se pecado, mesmo antes do Sinai. Atente à narrativa de Gênesis e você perceberá que a primeira quebra do casamento monogâmico acontece com Lameque, um descendente de Caim que se orgulha de ser pior que seu antepassado (Gn 4.19-24). É interessante notar que quando os fariseus questionam a Jesus a respeito do divórcio por qualquer razão, curiosamente a Lei citada por Jesus não foi a dada por Moisés no Sinai, mas a que foi dada por ocasião da criação: "Não tendes lido que o Criador, desde o princípio, os fez homem e mulher e que disse: Por esta causa deixará o homem pai e mãe e se unirá a sua mulher, tornando-se os dois uma só carne?" (Mt 19.4.5, cf Gn2.24).

Avance na leitura de Gênesis e veja o que aconteceu nos dias de Noé. Por causa da maldade que aumentou ao extremo o Senhor resolveu dar cabo de toda carne, mas preservou, pela graça, a Noé e sua família. Após sair da Arca, Deus restabeleceu o Pacto com Noé e ele ouviu as mesmas palavras que Adão ouvira na criação, “sede fecundos, multiplicai-vos e enchei a terra” (Gn 9.1). Não é estranho, então, o fato de Deus ter preservado um homem que tinha um casamento conforme a lei dada na criação, ou seja, que tinha somente uma esposa, a despeito de a poligamia já ser algo comum nos tempos de Noé.

Sabemos que, culturalmente, a bigamia era praticada nos tempos do Antigo Testamento, mas isso não prova que ela era permitida, antes, aponta para o fato inconteste de que os homens quebram a Lei do Senhor desde a queda de Adão. Isso fica ainda mais claro quando Jesus afirma que o simples olhar de forma impura para uma mulher já é quebra do sétimo mandamento. Daí os mandamentos dados no Sinai apontarem para o padrão estabelecido por ocasião da criação, no Pacto feito com Adão e seus descendentes.

Quando um conselheiro está diante de um caso de adultério, ele não pode simplesmente dizer: pare de adulterar! Junto com isso ele precisa demonstrar o padrão estabelecido por Deus, em acordo com o seu caráter Santo e a impossibilidade de o homem, sem Cristo, se adequar a esse padrão. Desta forma, o aconselhado será direcionado ao Senhor Jesus Cristo, o único que cumpriu perfeitamente a todos os mandamentos. Esta é a beleza expressa na doutrina do segundo Pacto, o Pacto da graça, que conforme o ensino do Catecismo Maior “foi feito com Cristo, como o segundo Adão; e nele, com todos os eleitos, como sua semente” (Pergunta 31).

Foi esta graça que alcançou a Noé e o capacitou a adequar-se ao mandamento de não adulterar. Seus aconselhados precisam entender que esta graça está disponível a todos os que creem em Cristo, pois como ensina a pergunta 32 do Catecismo Maior,

“a graça de Deus é manifestada no segundo pacto em ele, livremente, prover e oferecer aos pecadores um Mediador e a vida e a salvação por ele; exigindo a fé como condição de interessa-los nele, promete e dá o Espírito santo a todos os seus eleitos, para neles operar essa fé, com todas as demais graças salvadoras, e para os habilitar a praticar toda a santa obediência, como evidência da sinceridade da sua fé e gratidão para com Deus, e como o caminho que Deus lhes designou para a salvação”.

Meus irmãos, não se aventurem a aconselhar uns aos outros sem antes dedicar-se a um estudo sério da Palavra de Deus. Não seja um salpicador de versículos, mas alguém que busca compreender os textos dentro de seus devidos contextos a fim de aplica-los com sabedoria às circunstâncias enfrentadas por aqueles que sofrem e que pedem ajuda. Aconselhamento bíblico implica conhecimento teológico. Procure, então, “apresentar-te a Deus aprovado, como obreiro que não tem de que se envergonhar, que maneja bem a palavra da verdade” (2Tm 2.15).

Milton C. J. Junior


[1] Robert Kellemen. Aconselhamento segundo o Evangelho. p. 41 – Ed. Cultura Cristã

[2] Jonn Babler (editor). Fundamentos teológicos do aconselhamento bíblico. p. 98 – Ed. Nutra

[3] Jay Adams. Teologia do aconselhamento cristão. p. 30 – Ed. Peregrino

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