Se você está familiarizado com o aconselhamento bíblico, ou, sobretudo, com as Escrituras, conhece a ordem paulina para “falar a verdade em amor” (Ef 4.15). Apesar de a tradução Revista e Atualizada de Almeida trazer “seguindo a verdade em amor”, um dos sentidos desta palavra grega, traduzida por “seguir”, é “falar ou contar a verdade”[1]. Olhando para o contexto, parece que falar é mesmo uma tradução preferível, pois nos versículos 11 e 12 Paulo lista alguns dons ligados à Palavra afirmando que eles foram concedidos para o aperfeiçoamento dos santos e no versículo 14 ele mostra a finalidade: para que os irmãos não fossem levados por vento de doutrina.
Falar a verdade em amor é um conceito importante para o aconselhamento, pois na Bíblia temos várias ordens para ir tratar com os irmãos:
· Se alguém peca contra nós, Jesus ordena ir até o ofensor (Mt 18.15);
· Se há um irmão faccioso, ele precisa ser admoestado (Tt 3.10);
· Se alguém for surpreendido em falta, precisa ser corrigido (Gl 6.1);
· Se alguém está insubmisso, precisa ser admoestado; se desanimado, precisa de consolo; se fraco, precisa ser amparado (1Ts 5.14);
· E outras.
A motivação para o confronto, exortação, admoestação, encorajamento e animação dos irmãos precisa ser o amor cristão e tudo deve ser feito por esta razão. Mas como proceder caso aquele que venha tratar comigo, em quaisquer desses casos, não fale em amor? O que fazer quando meu irmão fala a verdade de forma rude e dura? Creio que essa resposta envolve pelo menos três aspectos que precisam ser notados.
Avalie a sua percepção e motivação
Não é fácil ser confrontado. Quando alguém aponta para os nossos pecados, geralmente a primeira reação é a negação. É por conta disso que é preciso avaliar a percepção e a motivação quando julgamos que alguém não disse o que disse em amor. Se é verdade que pode haver razões que nada têm a ver com o amor cristão por parte daqueles que decidem tratar os pecados de outrem, é igualmente verdadeiro que o orgulho pode fazer com que uma pessoa perceba de forma errada a intenção alheia, tendo por motivação o não querer dar ouvidos à verdade.
Muitos veem falta de amor quando as palavras são ditas de forma firme e séria ou quando elas não estão de acordo com o que eles querem. Um bom exemplo disso é a reação ao discurso que Jesus proferiu após a murmuração dos judeus diante de sua afirmação de ser o pão do céu. Após o fim de sua fala, em que afirmou categoricamente que ninguém iria a ele se o Pai não concedesse, muitos dos que o seguiam disseram: “Duro é este discurso; quem o pode ouvir?” (Jo 6.41-60). Com a insistência de Jesus naquele discurso o resultado foi: “À vista disso, muitos dos seus discípulos o abandonaram e já não andavam com ele” (Jo 6.61-66).
Algo importante aqui é que Jesus em momento algum “amacia” suas palavras. Com o abandono de muitos, ele perguntou diretamente aos 12: “Porventura, quereis também vós outros retirar-vos?” (Jo 6.67).
É preciso sempre avaliar se o julgamento de dureza ou falta de amor não é em razão de não querer ouvir a mensagem. Muitos, para rejeitar a mensagem, colocarão defeito no mensageiro e apontarão para os seus pecados, talvez numa tentativa de demonstrar que ele não tem autoridade para repreendê-los. Avalie muito bem o seu coração.
Dê ouvidos à verdade
Avaliado o seu coração para saber se você não está procurando uma desculpa para se esquivar de sua responsabilidade, dê ouvidos à verdade. Talvez você insista e pergunte: “Como ouvir alguém que está com intenções pecaminosas? Como ouvir alguém que não está preocupado comigo, mas simplesmente arrumou um pretexto para me repreender?”.
Creio que podemos pensar em alguns exemplos bíblicos. No Evangelho conforme Mateus Jesus disse às multidões e a seus discípulos que os escribas e fariseus estavam assentados na cadeira de Moisés, na posição de mestres da Lei. Por mais que Jesus criticasse muitas das distorções da Lei que eles ensinavam, eles eram os professores da Lei e muito do que falavam estava em acordo com Moisés. Daí Jesus dizer: “Fazei e guardai, pois, tudo quanto eles vos disserem, porém não os imiteis nas suas obras; porque dizem e não fazem” (Mt 23.1-3).
Você precisa entender isso à luz do que Jesus havia dito no Sermão do Monte. Após afirmar que não tinha vindo para revogar a Lei e que ela continuaria válida, Jesus disse aos seus discípulos que a justiça deles deveria exceder em muito à dos escribas e fariseus (Mt 5.17-20). O exemplo disso fica claro ainda no Sermão do Monte. Jesus diz que os fariseus gostavam de exercer sua justiça diante dos homens para serem vistos, mas que seus discípulos tinham de fazer com o foco na glória de Deus (Mt 6.1-8;16-18).
Fica bem claro que, a despeito de os fariseus fazerem várias coisas pelas razões erradas, isso não invalidaria o ensino, se este fosse correto. Daí a ordem para os discípulos fazerem o que estava sendo ensinado, sem imitar as obras dos “mestres”.
Outro texto que pode nos ajudar aqui está na epístola de Paulo aos Filipenses. O apóstolo diz que, em decorrência de sua prisão, muitos irmãos ousaram pregar mais confiadamente. Após isso, ele reconhece que outros pregavam por razões diversas: “Verdade é que também alguns pregam a Cristo por inveja e porfia; [...] outros, na verdade, anunciam a Cristo por contenção, não puramente, julgando acrescentar aflição às minhas prisões” (Fp 1.15-17).
Esse texto é usado por muitos de forma equivocada para defender que o evangelho precisa ser pregado, ainda que distorcido (de qualquer jeito). Não é esse o ponto. Paulo não está falando da distorção da verdade, mas da intenção daqueles que pregam a verdade. Neste sentido, a despeito das intenções erradas, diz Paulo: “Mas que importa? Contanto que Cristo seja anunciado de toda a maneira, ou com fingimento, ou em verdade [insisto, a verdade aqui diz respeito à intenção da pregação, não ao conteúdo dela], nisto me regozijo e me regozijarei ainda” (Fp 1.18).
Diante disso, fica claro que as más intenções de quem prega não anulam a verdade da Palavra de Deus. Por isso, se alguém for ter com você exortando-o a se arrepender de seus pecados, ainda que queira com isso simplesmente expor o seu erro para humilhá-lo, se é verdade, é preciso dar ouvidos a ele e corrigir-se para a glória e com a ajuda do Senhor, pois Jesus afirmou categoricamente que, sem ele, nada podemos fazer.
Confronte o pecado daquele que não foi amoroso
O último aspecto a ser pensado é a respeito daquele que nos corrigiu, mas supostamente sem amor. Mais uma vez é importante verificar se este é um fato ou se não é impressão, pois somos muito diferentes uns dos outros e temos maneiras bem distintas de falar. Uns são mais mansos, outros são mais firmes, outros mais diretos, etc. Contudo, se você está entendendo que o seu irmão o repreendeu com a motivação errada, é preciso também confrontá-lo.
Aqui é preciso lembrar a máxima de Paul Tripp: somos “instrumentos nas mãos do Redentor, pessoas que precisam ser transformadas ajudando pessoas que precisam de transformação”. Diante dessa realidade, é preciso cumprir o que Jesus ordenou, “se teu irmão pecar contra ti, vai argui-lo entre ti e ele só. Se ele te ouvir, ganhaste a teu irmão” (Mt 18.15). Explique a ele que você entendeu ser bíblico aquilo que ele disse, mas que entendeu que ele também pecou na motivação. Dê o benefício da dúvida a seu irmão, ouça seus argumentos. Se ele entender que pecou e se arrepender, perdoe-o. Se ele explicar e você se contentar com o que ele disser, as coisas estão resolvidas. Se não, continue os passos de Mateus 18, chame testemunhas, entregue-o à igreja, etc.
Pra terminar
Como já foi dito, geralmente não gostamos de ser repreendidos. Por causa disso, a tentação de usar desculpas para não dar ouvidos à repreensão sempre será uma realidade. Se queremos viver para a glória de Deus é preciso avaliar o nosso coração a fim de verificar se não estamos nos esquivando. Peça ao Senhor sabedoria para avaliar seu próprio coração.
Dê ouvidos à verdade! O pecado de outros nunca irá nos redimir. A redenção está somente em Cristo Jesus quando o pecado é confessado e deixado.
Vá se acertar com seu irmão. Se há dúvidas sobre as motivações dele, é preciso haver uma boa conversa a fim de que tudo se estabeleça e que o Senhor seja glorificado em nossos relacionamentos.
Milton C. J. Junior
[1] Léxico Hebraico, Aramaico e Grego de Strong
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