terça-feira, 9 de junho de 2020

A importância da teologia no aconselhamento


Certa vez, alguns dias após uma aula que ministrei em um treinamento de aconselhamento bíblico, fui indagado por um irmão a respeito de uma afirmação que eu havia feito na classe. Eu havia ensinado que incorremos em idolatria todas as vezes que pecamos para conseguir o que queremos ou quando pecamos porque não conseguimos o que queremos. Essas atitudes (pecados) deixariam claro que o coração está sendo governado por um (ou mais) ídolo(s) e não pelo Senhor.

Para exemplificar, falei sobre a história de Jacó. Desde que viu a Raquel pela primeira vez ele havia se apaixonado e trabalhou sete anos para o seu sogro, a fim de casar com a moça. Labão, aproveitando-se da situação, conduziu a filha mais velha, Lia, para o casamento e eles coabitaram, fato que só foi notado por Jacó no dia seguinte, pela manhã. Jacó, que já estava casado, topou trabalhar mais sete anos e casou-se também com Raquel, estabelecendo uma bigamia e incorrendo em adultério, o que é pecado (Gn 29.1-30). Com isso, eu disse que podíamos perceber que o amor de Jacó por Raquel dominava o seu coração e ele agia em função disso e não segundo a Lei do Senhor.

A indagação foi, então, a respeito da minha afirmação de que Jacó havia adulterado. O irmão entendia que não havia adultério naquela relação, pois era um período pré lei e aquele casamento era legítimo na cultura em que vivia Jacó. Minha resposta foi que tudo dependeria da forma como se compreende o Pacto de Deus com o homem e que a afirmação dele tinha como pressuposto a ideia de que antes do Sinai não havia ainda os dez mandamentos, incluindo o sétimo, não adulterarás.

Antes de explicar o que está por trás da minha afirmação, preciso mencionar algo importante. Muitas pessoas, ao pensar em aconselhamento bíblico, entendem que ele consiste apenas em atirar alguns versículos isolados, geralmente fora do contexto, na cabeça das pessoas e as exortarem a se adequar ao que o texto está dizendo. Daí entenderem que é necessário o encaminhamento a profissionais, especialistas no cuidado da alma, que estudaram e sabem do que estão falando. Entretanto, como afima Kellemen,

“quando pessoas [...] pedem ajuda e esperança, a igreja não tem que se sentir inferior e encaminhá-las a ‘especialistas de fora’. Nós não temos de borrifar uns poucos princípios cristãos à sabedoria mundana. Nós não temos que seguir a rasa abordagem de concordância de um problema, um versículo, uma resposta[1].

Longe disso! Em vez disso, John Babler aponta o caminho correto:

“Adquirir uma perspectiva bíblica equipa o conselheiro para a tarefa de corrigir o que foi arruinado pela busca pecaminosa de uma sabedoria inadequada. O conselheiro deve trabalhar diligentemente na exegese e na compreensão das Escrituras. À medida que as Escrituras revelam o caráter de Cristo, homens e mulheres podem conhecer a Deus. Uma pessoa nunca mais será a mesma depois de ter conhecido a Deus”[2].

Conselheiros precisam estudar teologia, pois o conselho de Deus emana da sã doutrina expressa nas páginas da Escritura Sagrada que, nas palavras de Paulo, “é inspirada por Deus e útil para o ensino, para a repreensão, para a correção, para a educação na justiça, a fim de que o homem de Deus seja perfeito e perfeitamente habilitado para toda boa obra” (2Tm 3.16-17). “O uso superficial, não-teológico da Bíblia confunde e desencoraja os consulentes (assim como representam mal Deus pela má compreensão do ensino da Bíblia)”[3].

Volto, então, à minha afirmação a respeito do adultério de Jacó. Como pastor presbiteriano, subscrevo as Escrituras Sagradas do Velho e Novo Testamento como única regra de fé e prática, bem como a Confissão de Westminster e seus Catecismos Maior e Breve como sistema expositivo de doutrina. Este é meu norte teológico.

Como afirmei ao irmão que me indagou, esta é uma questão diretamente ligada à doutrina do Pacto. Creio que Deus estabeleceu com Adão, e nele com sua posteridade, o que é chamado de Pacto de Obras em que a vida lhe foi prometida “sob a condição de perfeita obediência pessoal” (CFW VII.II). Onde estava o padrão para a obediência de Adão? O Catecismo Maior responde na “Pergunta 92. O que Deus revelou primeiramente ao homens como regra de sua obediência? Resposta: A regra de obediência revelada a Adão, no estado de inocência, e a todo gênero humano nele, além do mandamento especial de não comer do fruto da árvore da ciência do bem e do mal, foi a lei moral”. Para não restar dúvidas de que o ensino confessional aponta para a Lei já presente no Éden, basta olhar para a resposta à “Pergunta 98. Onde se acha a lei moral resumidamente compreendida? Resposta: A lei moral acha-se resumidamente compreendida nos Dez Mandamentos, que foram dados pela voz de Deus no monte Sinai [...]”.

Talvez aqui, aqueles que não estão acostumados com o ensino da Confissão de Fé de Westminster perguntem: E onde está isso na Bíblia? Pergunta importante que, creio eu, seja fácil de responder.

Ao criar o homem o Senhor o fez segundo a sua própria imagem e semelhança (Gn 1.26-28). Isso significa que o homem foi criado santo, como Deus é Santo. Sendo a Lei a expressão do caráter de Deus ela também não poderia ser outra coisa, senão o que afirma Paulo: “Por conseguinte, a lei é santa; e o mandamento, santo, e justo, e bom (Rm 7.12). Nesta mesma epístola aos romanos Paulo afirma que “quando os gentios, que não têm lei, procedem, por natureza, de conformidade com a lei, não tendo lei, servem eles de lei para si mesmos. Estes mostram a norma da lei gravada no coração (Rm 2.13-14). Ou seja, ainda que Paulo esteja tratando do cumprimento externo da lei, ele afirma que a norma da lei está gravada no coração do homem e isso decorre de, mesmo caído, ele ainda ser imagem e semelhança de Deus.

Nos Dez Mandamentos temos a expressão da Lei após o pecado, que consiste em mostrar ao homem qual é o padrão estabelecido no início à Adão. Tome como exemplo o sexto mandamento, não matarás. Onde você o encontra no Éden? Ele pode ser visto de forma positiva na ordem dada ao homem para que trabalhasse no Jardim. Como você pode ter certeza disso? Basta olhar a aplicação que Paulo faz do mandamento para uma vida de santidade, ao afirmar: Aquele que furtava não furte mais; antes, trabalhe, fazendo com as próprias mãos o que é bom, para que tenha com que acudir ao necessitado” (Ef 4.28). O que você pode perceber é que para cumprir o sexto mandamento não basta deixar de roubar. O contrário de roubar não é deixar de roubar, mas trabalhar e doar. O mandamento é dado de forma negativa no Sinai, porque deixou de ser praticado de forma positiva, em decorrência da queda do homem.

Com respeito ao adultério, a Lei está da mesma forma presente no Éden, por ocasião da criação. Deus faz um homem para uma mulher. Aqui está o estabelecimento do casamento heterossexual, monogâmico e perene. Qualquer atitude fora desse padrão constitui-se pecado, mesmo antes do Sinai. Atente à narrativa de Gênesis e você perceberá que a primeira quebra do casamento monogâmico acontece com Lameque, um descendente de Caim que se orgulha de ser pior que seu antepassado (Gn 4.19-24). É interessante notar que quando os fariseus questionam a Jesus a respeito do divórcio por qualquer razão, curiosamente a Lei citada por Jesus não foi a dada por Moisés no Sinai, mas a que foi dada por ocasião da criação: "Não tendes lido que o Criador, desde o princípio, os fez homem e mulher e que disse: Por esta causa deixará o homem pai e mãe e se unirá a sua mulher, tornando-se os dois uma só carne?" (Mt 19.4.5, cf Gn2.24).

Avance na leitura de Gênesis e veja o que aconteceu nos dias de Noé. Por causa da maldade que aumentou ao extremo o Senhor resolveu dar cabo de toda carne, mas preservou, pela graça, a Noé e sua família. Após sair da Arca, Deus restabeleceu o Pacto com Noé e ele ouviu as mesmas palavras que Adão ouvira na criação, “sede fecundos, multiplicai-vos e enchei a terra” (Gn 9.1). Não é estranho, então, o fato de Deus ter preservado um homem que tinha um casamento conforme a lei dada na criação, ou seja, que tinha somente uma esposa, a despeito de a poligamia já ser algo comum nos tempos de Noé.

Sabemos que, culturalmente, a bigamia era praticada nos tempos do Antigo Testamento, mas isso não prova que ela era permitida, antes, aponta para o fato inconteste de que os homens quebram a Lei do Senhor desde a queda de Adão. Isso fica ainda mais claro quando Jesus afirma que o simples olhar de forma impura para uma mulher já é quebra do sétimo mandamento. Daí os mandamentos dados no Sinai apontarem para o padrão estabelecido por ocasião da criação, no Pacto feito com Adão e seus descendentes.

Quando um conselheiro está diante de um caso de adultério, ele não pode simplesmente dizer: pare de adulterar! Junto com isso ele precisa demonstrar o padrão estabelecido por Deus, em acordo com o seu caráter Santo e a impossibilidade de o homem, sem Cristo, se adequar a esse padrão. Desta forma, o aconselhado será direcionado ao Senhor Jesus Cristo, o único que cumpriu perfeitamente a todos os mandamentos. Esta é a beleza expressa na doutrina do segundo Pacto, o Pacto da graça, que conforme o ensino do Catecismo Maior “foi feito com Cristo, como o segundo Adão; e nele, com todos os eleitos, como sua semente” (Pergunta 31).

Foi esta graça que alcançou a Noé e o capacitou a adequar-se ao mandamento de não adulterar. Seus aconselhados precisam entender que esta graça está disponível a todos os que creem em Cristo, pois como ensina a pergunta 32 do Catecismo Maior,

“a graça de Deus é manifestada no segundo pacto em ele, livremente, prover e oferecer aos pecadores um Mediador e a vida e a salvação por ele; exigindo a fé como condição de interessa-los nele, promete e dá o Espírito santo a todos os seus eleitos, para neles operar essa fé, com todas as demais graças salvadoras, e para os habilitar a praticar toda a santa obediência, como evidência da sinceridade da sua fé e gratidão para com Deus, e como o caminho que Deus lhes designou para a salvação”.

Meus irmãos, não se aventurem a aconselhar uns aos outros sem antes dedicar-se a um estudo sério da Palavra de Deus. Não seja um salpicador de versículos, mas alguém que busca compreender os textos dentro de seus devidos contextos a fim de aplica-los com sabedoria às circunstâncias enfrentadas por aqueles que sofrem e que pedem ajuda. Aconselhamento bíblico implica conhecimento teológico. Procure, então, “apresentar-te a Deus aprovado, como obreiro que não tem de que se envergonhar, que maneja bem a palavra da verdade” (2Tm 2.15).

Milton C. J. Junior


[1] Robert Kellemen. Aconselhamento segundo o Evangelho. p. 41 – Ed. Cultura Cristã

[2] Jonn Babler (editor). Fundamentos teológicos do aconselhamento bíblico. p. 98 – Ed. Nutra

[3] Jay Adams. Teologia do aconselhamento cristão. p. 30 – Ed. Peregrino

segunda-feira, 18 de maio de 2020

Entendimento, raiz das ações e sentimentos

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João Batista apareceu pregando arrependimento e batizando no Jordão, para onde afluíam muitos a fim de serem batizados por ele. Sua pregação era dura para com aqueles que iam ter com ele. João exortava, chamando-os de raça de víboras, afirmando que o fato de serem batizados não os livraria da ira vindoura, visto que eles não produziam frutos de arrependimento (Mt 3.1-9).

Suas ações estavam pautadas na certeza, por meio das Escrituras no Antigo Testamento, de que ele era aquele que viria à frente do Messias, preparando-lhe o caminho. Ao vir, o Messias derramaria o seu juízo, como ele afirma: “Já está posto o machado à raiz das árvores; toda árvore, pois, que não produz bom fruto é cortada e lançada ao fogo” (Mt 3.10). O Messias, dizia João Batista, batizaria com o Espírito Santo e com fogo. “A sua pá, ele a tem na mão e limpará completamente a sua eira; recolherá o seu trigo no celeiro, mas queimará a palha em fogo inextinguível” (Mt 3.10-12). Quando João viu a Jesus, afirmou: “Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo” (Jo 1.29).

Todas as ações e sentimentos de João Batista tinham como raiz o seu entendimento daquilo que ele lia nos profetas. Sua convicção norteava a sua vida.

Não somente ele, mas também os demais judeus pensavam que na vinda do Messias o reino de Israel seria restaurado. Este entendimento fez com que os discípulos Tiago e João pedissem a Jesus para se assentarem, um à direita, outro à esquerda, quando ele estivesse em sua glória (Mc 10.35-37).

Acontece que, diferente do que eles esperavam, as coisas estavam acontecendo de outro modo. João Batista foi preso injustamente e isso abalou o seu entendimento acerca do Messias. A pergunta que ele mandou seus discípulos fazerem a Jesus deixa isso claro: “És tu aquele que estava para vir ou havemos de esperar outro?” (Mt 11.2-3). De igual forma, os discípulos, após a crucificação do Senhor, estavam tristes e sem esperança. O relato acerca dos discípulos no caminho de Emaús demonstra claramente esta verdade (Lc 24.13-24).

Tanto a dúvida de João Batista como a tristeza dos discípulos de Emaús têm sua raiz no que eles estão entendendo naquele momento: Jesus não é o Messias, estávamos enganados. Era este falso entendimento que governava os seus corações, levando-os a agir e a pensar de forma errada.

Provérbios 23.6-7 adverte a não comer o pão do invejoso, “porque como imagina em sua alma, assim ele é”. A ideia é que o entendimento que o invejoso tem da situação em seu coração leva-o a agir de determinada maneira, daí o texto continuar dizendo: “ele te diz: Come e bebe; mas o seu coração não está contigo” ou, como traduz a NAA, “mas não está sendo sincero”. O que você entende a respeito de Deus determinará a forma como você olhará para a vida. O invejoso é aquele que quebra o 10º mandamento, ele cobiça, pois não confia no Deus que cuida dele.

Assim é também comigo e com você. Todas as nossas tristezas, ansiedades, ações erradas, são fruto de expectativas erradas. Expectativas erradas são fruto do desconhecimento ou do entendimento errado das verdades da Escritura Sagrada.

As igrejas estão repletas de crentes frustrados com a vida, pois esperavam que em Cristo seus problemas acabariam e isso não aconteceu. Aqueles que abraçam, por exemplo, a teologia da prosperidade, que ensina que crentes não adoecem, não têm problemas financeiros, nem passam por aflições, fatalmente irão se decepcionar em algum momento de sua caminhada.

É preciso, com o auxílio do Espírito do Senhor, estudar para conhecer corretamente a Palavra do Senhor. É ela que santifica a nossa vida, pensamentos e ações. Aqueles que estão em crise precisam ser reorientados a fim de olhar a vida pela perspectiva do Senhor. Foi isso que Jesus fez com João Batista e com os discípulos do caminho de Emaús.

Após ouvir a pergunta de João, Jesus respondeu: “Ide e anunciai a João o que estais ouvindo e vendo: os cegos veem, os coxos andam, os leprosos são purificados, os surdos ouvem, os mortos são ressuscitados, e aos pobres está sendo pregado o evangelho. E bem-aventurado é aquele que não achar em mim motivo de tropeço” (Mt 11.4-6). Por que Jesus responde desta maneira? Se você olhar os textos de Isaías 29.18-19; 35.5-6; 26.19 e 61.1, verá que estava profetizado que o Messias faria tudo isso. Era como se Jesus estivesse dizendo: Não se preocupe, você não está enganado a respeito de mim. Tudo o que eu faço está registrado nos profetas. Viria ainda o dia do juízo, mas antes, o Senhor precisava redimir o seu povo. Aos discípulos de Emaús o Senhor explicou tudo o que os profetas disseram a respeito de sua morte e ressurreição (Lc 24.25-27). Aos discípulos, que mesmo após a ressurreição insistiam em querer saber acerca da restauração do reino, Jesus afirmou que não lhes competia saber a respeito de tempos e épocas, mas que eles receberiam o poder do Espírito Santo, tal qual profetizou Joel (At 1.6-8; Jl 2.28-32).

O que precisamos a fim de pensar e agir corretamente é entender de forma correta aquilo que o Senhor nos revelou. Temos o Espírito Santo, Mestre por excelência, que nos ilumina e nos conduz à verdade.

Quanto mais você conhecer o seu Senhor, menos expectativas falsas terá. Quanto menos expectativas falsas, menos ações erradas, menos emoções pecaminosas. Você aprenderá, dia a dia, a responder às circunstâncias de forma piedosa, honrando aquele que está, soberanamente, no controle de todas as coisas, incluindo o que ocorre em sua vida.

Milton C. J. Junior

segunda-feira, 27 de abril de 2020

Cuidado com esse tempo de Crenteflix

Semana passada tive o privilégio de participar de uma Live do Blog Inconformados cujo tema foi “A ‘igreja online’ e o corpo de Cristo”. Dentre as perguntas que tive de responder, uma estava sendo alvo de algumas ponderações minhas já há alguns dias. A pergunta era se com toda esta situação, não há o risco de muitos crentes esfriarem ou mesmo não voltarem a congregar, preferindo as transmissões online.

Este é um assunto importante, creio eu. Alguns têm mesmo gostado da atual situação, achando que é possível manter uma igreja “online”. Entretanto, levando em conta o que a Escritura ensina a respeito da igreja, percebemos que isso é impossível. Ser parte da Igreja de Cristo implica comunhão, implica estar juntos (At 2.44), sobretudo no ajuntamento solene convocado por Deus no dia do Senhor, quando a igreja reunida adora o seu majestoso Redentor. Nenhuma conexão via fibra ótica substituirá o ajuntamento dos crentes, ordenado pela Escritura.

Nestes dias de pandemia muitas igrejas locais estão se beneficiando da tecnologia a fim de levar aos seus membros alimento. É claro que isso não vai substituir as reuniões presenciais, mas é um meio de suprir uma demanda pontual. Podemos mesmo agradecer a Deus pela bênção da tecnologia, sem esquecer de vigiar para que esta bênção não se transforme em maldição. Infelizmente, pecadores que somos, conseguimos transformar coisas boas em pedras de tropeço para a vida espiritual.

Creio firmemente que todas as circunstâncias pelas quais passamos são usadas pelo Senhor a fim de revelar o nosso coração. A forma como reagimos às circunstâncias pode ser piedosa ou pecaminosa. Pense, por exemplo, na vida de Jó. A Bíblia relata que ele perdeu seus bens e seus filhos. O texto regista a reação de Jó diante de toda essa tragédia: “Então, Jó se levantou, rasgou o seu manto, rapou a cabeça e lançou-se em terra e adorou; e disse: Nu saí do ventre de minha mãe e nu voltarei; o Senhor o deu e o Senhor o tomou; bendito seja o nome do Senhor! Em tudo isto Jó não pecou, nem atribuiu a Deus falta alguma” (Jó 1.20-22).

Após isto ele perdeu também a saúde quando foi ferido por Satanás e o texto registra também a reação de sua esposa diante de toda a situação. Ela igualmente perdeu os filhos, os bens e, apesar de não ter perdido a saúde, perdeu o marido sadio. Sua situação era tão complicada quanto a de seu marido e em meio ao sofrimento ela disse a Jó: “Ainda conservas a tua integridade? Amaldiçoa a Deus e morre”, sendo repreendida por ele que afirmou: “Falas como qualquer doida; temos recebido o bem de Deus e não receberíamos também o mal?” (Jó 2.7-10).

A situação era difícil, mas não foi a situação que causou a reação piedosa de Jó e pecaminosa de sua esposa. Cada um reagiu conforme aquilo que já estava em seu coração, sendo a circunstância apenas o meio usado pelo Senhor para revelar os corações.

Dito isto, nestes tempos de pandemia, com as transmissões online, muitos crentes estão demonstrando que seu compromisso não é com sua igreja local. Eles até iam às suas igrejas antes da pandemia, mas ao que parece, somente por falta de opção e porque não havia o que justificasse estarem em suas casas assistindo cultos, afinal de contas, isso é coisa de desigrejado! Agora, com o isolamento, há uma “boa” desculpa para ficar em casa e, do conforto de seus sofás, eles têm um leque de opções na Crenteflix, uma vez que o número de igrejas que estão transmitindo mensagens pela internet subiu exponencialmente.

Mesmo entre aqueles que gostavam de estar em suas igrejas locais, há um perigo sutil e uma atitude que acaba por revelar desprezo por suas igrejas locais. Explico! O crescimento no número de transmissões ocorreu porque muitos Conselhos, pastores e líderes de igrejas que nunca pensaram sequer em chegar perto de uma câmera e criar conteúdo para a internet, começaram a ficar preocupados com suas ovelhas e estão tentando suprir os irmãos, pelo menos com mensagens e estudos.

Infelizmente, como estão em suas casas, muitos têm desprezado os esforços de seus líderes e buscado no catálogo do Crenteflix os pregadores mais famosos, mais eloquentes, indicando, talvez, sua insatisfação com os líderes que o Senhor colocou para cuidar de suas vidas na igreja local. Neste caso, parecem estar na igreja somente por falta de opção e não demonstram estar gratos pelo Senhor, em sua providência, os colocar naquela determinada igreja.

Caso, após a pandemia, estes irmãos continuarem em suas casas assistindo as mensagens online, ou esfriarem na fé, não terá sido por culpa da pandemia, nem do isolamento social. Esta circunstância terá servido apenas para revelar corações insatisfeitos com a igreja local.

Não me entenda mal, não sou contra a tecnologia. Há anos mantenho um blog e as mensagens pregadas em nossa igreja semanalmente são postadas em nosso canal no YouTube. Me beneficio bastante de boas exposições de pastores sérios de igrejas irmãs e sempre recomendo bons canais, tanto para membros de nossa igreja, quanto para pessoas que eu aconselho, como ferramentas de edificação para o corpo de Cristo. Meu ponto é simplesmente o desprezo pelos líderes da igreja local.

O perigo é que se o crente pode ter, no conforto de sua casa, uma aula de escola dominical ministrada por um pastor que é muito requisitado para congressos, e ter na mensagem da noite outro tão requisitado como o primeiro, para que vai querer ouvir o pastor de sua igreja local?

Como afirma Michael Horton: “Talvez você tenha ouvido e orado as Escrituras com a sua família a cada dia, aprendendo em casa e na igreja as grandes verdades da Escritura por meio de catecismo. Porém, na cultura evangélica do novo e da novidade, nada disso conta. O que realmente importa é aquele evento espiritual extraordinário”[1].

Pensando nisso, a infinidade de conteúdo disponível hoje pode levar os crentes a tentar emular seus próprios “eventos espirituais”, com os pregadores que mais lhes agradam, totalmente desvinculados de sua igreja local. Mas como aponta Horton, “no entanto, é precisamente o ministério corriqueiro, entra semana, sai semana, que oferece crescimento sustentável e estimula as raízes a crescer para o fundo. Se os grandes momentos de nossa vida cristã são produzidos pelos grandes movimentos no mundo evangélico, a igreja local ordinária parecerá bastante irrelevante”[2].

Diante de tudo isso, encerro com alguns apontamentos:

1. Cuide para não cair na armadilha de achar que a bênção da tecnologia pode suprir o que você tem em sua igreja local;

2. Aproveite o bom conteúdo disponibilizado por muitos irmãos sérios para a sua edificação, mas sonde o seu coração a fim de verificar se a busca por estes conteúdos não é simplesmente a expressão de um coração insatisfeito com os líderes que o Senhor colocou em sua igreja e que velam por sua vida;

3. Nos dias em que há transmissão de sua igreja local, dê prioridade a isso. Em nossa igreja, por exemplo, as aulas são transmitidas em videoconferência e podemos, além de ouvir os estudos, ter contato, ainda que virtual, com os irmãos da igreja local, numa demonstração de que, apesar do isolamento, queremos estar juntos;

4. Agradeça ao Senhor se a sua igreja local tem condições e seus líderes estão se esforçando para minimizar os impactos do isolamento social na vida espiritual de suas ovelhas. Estimule-os e anime-os, ainda que eles não sejam tão bons como aquele pastor de congressos. Lembre-se que ir a um restaurante vez por outra e comer um prato especial é bom, mas o que sustenta a sua vida é o “arroz com feijão” corriqueiro;

5. Ore para que o Senhor abrevie estes dias que estamos vivendo a fim de podermos, o mais rápido possível, voltar à comunhão da igreja local. O Corpo de Cristo em que cada membro tem sua função e contribui para a edificação de todos necessita estar junto, para a glória do seu Redentor.

Milton C. J. Junior


[1] Michael Horton. Simplesmente crente. Ed. Kindle

[2] Michael Horton. Simplesmente crente. Ed. Kindle